Eve Tempted by the Serpent (1799/1800) Blake, William
É um direito humano não matar. Não aprender a matar. Ele não está escrito em nenhuma Constituição.
Aleksiévitch, Svetlana. Meninos de Zinco. Companhia das Letras.
Eu já tive uma arma nas mãos. É pesada. Sólida e simples até. Vi-as tantas vezes na televisão, nos filmes e nas histórias que já tinha sua engenharia na cabeça, pronta, antes mesmo de se deparar com uma. Ainda assim, como uma ilusão perigosa, ela parece de brinquedo quando olha-se de longe. A primeira vez que fui assaltado, ainda no interior, em um banco, lembro que eles gritaram para todo mundo se deitar enquanto eles “faziam uma limpa”. Eu ainda olhei para a mão dele e parecia uma pistola de brinquedo. Lembro-me claramente disso, porque não havia julgamento, era exatamente o que eu via, sem véus: parecia de plástico. Eu era criança e só conhecia as beretas retratadas no jogo resident evil.
Outra vez, já adulto e estabelecido na capital, eu fui assaltado enquanto cuidava da lan house da minha tia. Um cara mal encarado no melhor estilo zé pequeno e outro bem arrumadinho que ninguém diria ser um bandido esvaziaram o lugar em segundos, procuraram apenas dinheiro nas gavetas e eu, que também ocupava um computador e não pude escapar, levei uma coronhada na nuca. Sangue escorreu e tive muito medo, mas eles partiram e eu senti uma imensa tristeza por aquela injustiça, como se o céu houvesse finalmente me dado uma deixa do tamanho da minha insignificância e de sua indiferença. Outra vez, em uma danceteria, ainda adolescente, um cara me ameaçou com um revolver ao ver que uma menina estava dando mole para mim. Eu peguei o revolver pela mão e esmigalhei, era de plástico barato. Ele me espancou até eu ser protegido pelos seguranças do local.
Mês passado saiu no jornal local (link): uma mulher da minha idade foi assaltada em uma cidade do interior do estado; ela entrou e pegou um revolver e apontou para o assaltante, que foi mais rápido e matou ela com um tiro à queima roupa. Ela tinha a arma e tinha a coragem, mas não tinha a técnica. E estava apenas defendendo um patrimônio de todo recuperável. Morreu fazendo isso.
Essas histórias não são novidades para o brasileiro médio. Também não são para a maioria das pessoas na América Latina. Em um podcast sobre brasileiros no exterior (nerdcast 732) o depoimento deles foi de que a única coisa que era pior de maneira significativa segundo sua própria percepção era a falta de segurança pública — que de resto, tudo era bem aceitável e em tudo igual a países como Canadá ou França. Concordo: a condição humana é a mesma em todo lugar, mas se há algo que desejamos para melhor aos nossos e aos que virão, essa coisa definirá não apenas a nossa cultura como os próprios definidores. E quem vive pela espada morre pela espada.
Armas de fogo estão na moda. Sempre estiveram, dirão, e agora tem o lobby oficial do próprio presidente. Com a mania de copiar tudo que é feito nos Estados Unidos (tudo não, só o doentio ao que parece), poucas diferenças culturais são respeitadas, e aos poucos a fama de homem cordial do brasileiro se transforma em de homem bestial. Não é de meu interesse, no entanto, lutar contra um lobby de empresas com muito mais poder que jamais terei; acho até que as armas são e estão para os homens naquilo que o aborto está para as mulheres: já acontece na clandestinidade, e torna uma situação que poderia ser segura e controlada mediante fiscalização em outra muito perigosa e muitas vezes cheia de dor. Não só isso, a insegurança masculina parece se nutrir da falsa segurança que uma arma pode proporcionar, mas que, em última análise, só pode propiciar o suicídio de quem a possui, seja de própria vontade ou acidental.
Semana passada terminou-se The Leftovers aqui em casa (nesta casa prezam-se muitíssimo as séries e mais ainda as da ei-tibi-ou). Eu não diria que é necessária uma faculdade de teologia ou de filosofia para melhor apreciar esta série, mas… é quase. De tantos comentários que eu poderia fazer todos teriam detalhes do enredo que poderiam estragar a diversão, de modo que só posso dizer: assistam agora. O meu comentário geral, no entanto, é que é uma história sobre o luto e sobre a perda, mas também sobre o fanatismo religioso e sobre armas, que se não são protagonistas, de certo estão lá, o tempo todo. Como uma série que pretende apresentar uma faceta do cotidiano americano, elas não poderiam ficar de fora. E para aprofundamento na questão do luto e da perda, recomendo o excelente podcast Finitude, de Juliana Dantas. Ainda que fosse necessário perder 4 milhões de pessoas para ter uma taxa semelhante à das pessoas desaparecidas na série, é preciso admitir que o país passa por sua própria tragédia nesse momento, com quase 100 mil vidas perdidas (arredondando para baixo) para o Covid.
A vida é feita nem tanto das nossas escolhas como é das nossas renúncias. As armas logo serão também parte de nosso cotidiano (a constatar pelas políticas públicas porque pesquisas apontam que o brasileiro médio não tem tal interesse). Você consegue se imaginar com uma arma na mão? Ainda que dentro de casa somente, você consegue se imaginar matando outra pessoa? Qual é a renúncia possível neste caso? Escolher a vida, escolher morrer a matar. Está nas escrituras: é melhor um cão vivo do que um leão morto.
Eu presenciei o parto quando minha mulher estava dando à luz. Nesses momentos é preciso ter alguém próximo para segurar sua mão. Agora, eu obrigaria cada imbecil do sexo masculino a ficar ao lado da cabeça de uma mulher quando ela está dando à luz, quando as pernas dela estão abertas e ela está toda cheia de sangue, cheia de merda. Vejam, seus filhos da puta, como uma criança vem ao mundo. E vocês [soldados] matam com tanta simplicidade. Matar é fácil. É simples. (…) Dois mundos viraram minha vida do avesso: a guerra e a mulher. Me obrigaram a pensar para que eu, um pedaço de carne nojento, vim para esta terra.
Aleksiévitch, Svetlana. Meninos de Zinco. Companhia das Letras. Edição do Kindle.
O Brasil nunca participou para valer de uma guerra (exceto contra os seus próprios, como aponta com acidez o último Greg News), ao menos não como os Americanos (vamos chama-los assim, que é como eles se identificam, seu “nome social”, por assim dizer) participam. Lá, a cultura do soldado traumatizado é real, e antes fossem só os soldados: a cultura do tiroteio em massa também. Como diz a música do Sun Kil Mon, Pray for Newtown: “His eyes were glazed like he was from Mars/ Yesterday he was no one, today he was a star”.
Matar pode ser o êxtase adulterado que faltava ao zé ninguém reicheano, mas é também a consequência de uma cultura de armas crescente, alimentada por empresas multinacionais e famílias poderosas com conexões no exército, na polícia e em Brasília. Se eu não posso parar completamente de comer carne no momento (uma indústria da morte muito mais invisível e que está destruindo o planeta) que ao menos eu renuncie à suposta vantagem de ter uma arma.