As coisas definitivamente mudaram. Nunca foi tão iminente a necessidade de cooperação para uma transformação global donde emergiria um mundo mais digno, pleno e verdadeiro. Nada, porém, jamais indicou que seria fácil — ainda assim é o que todos desejam. Sem deus ex machina, a narrativa é a mesma que sempre conhecemos: somos uma espécie resiliente e altamente adaptativa. A tecnologia, a mesma que passou por recentes acusações de ter sido usada para causar danos às democracias do mundo e à privacidade dos indivíduos, têm sido a solução para superar a distância.
A ciência, também, promete uma vacina em cinco anos, mas se é permitido usar o próprio método científico para fazer previsões, podemos ter a primeira vacina da história criada, testada e distribuída, em um ano ou dois. É apenas um desejo, mas que poderia se tornar realidade. A questão, nesse caso, e que orientou o presente projeto Mundos Possíveis, e que provavelmente não irá embora tão cedo (dando espaço até para um projeto contínuo de Mundos Possíveis) permanece: Che Vuoi? Que queres deste mundo que há de vir? Mais ainda: Que desejas desejar, que falta tens que não podes completar e que ensejas para um mundo após o fim da pandemia?
Apesar de tudo, muitas instituições e empresas sérias fizeram sua parte para defender o isolamento de quem tinha condições e não estivesse em serviços essenciais, artistas famosos aderiram aos shows ao vivo pela internet, conseguiram adiar o Enem e empresas liberaram conteúdo grátis; também muitas empresas internacionais fazem pressão para que os desmatamentos e as queimadas na Amazônia cessem. Aos poucos, no entanto, ainda que sem nenhuma vacina, as cidades voltam a se movimentar, arriscando um aumento de infecções e consequentemente de mortes. Psicólogos já chamam o isolamento social de “o experimento psicológico da história”. Fato é que estamos vivendo uma experiência comunitária de nível local e global, e isso implica na emergência de novos padrões complexos, para a sociedade, a cultura e as cidades onde, se se perde de um lado, muito se ganha do outro. Pois como diz o arquiteto Pasqualino Romano Magnavita:
Nesse sentido, emerge o complexo conceito de experiência enquanto experiência urbana, cultural e corporal, a qual acaba por se expressar em específicos condicionamentos, os quais dependem dos diferentes corpos e das diferentes cidades em que eles habitam, dos diferentes saberes sedimentados, de gênero e/ou etnia a que pertencem, da idade que possuem, do emprego a que estão atrelados e/ou desempregados, pelas relações de poderes que os atravessam de serem afetados ou de afetarem, enfim, um conjunto de especificidades e que, todavia, acabam sob controle da forma de pensar dominante em que as preocupações desses diferentes corpos e de seus desejos é o de Ter e não o de Ser. Basicamente, os diferentes corpos encontram-se imersos, para não dizer afogados no oceano do marketing e seduzido pelos efeitos pirotécnicos das mídias, que os mantêm cativos pela “coleira eletrônica” (…), corpos rastreados por diferentes chips das Sociedades de Controle
Magnavita , Pasqualino Romano. Cidade, cultura, corpo e experiência. ReDObRa. número 10, ano 3, 2012, p.27.
Quando os shoppings estão interditados, para onde as pessoas vão para ignorar sua existência? Quando a empresa pede que seu empregado trabalhe de casa, não por que houve uma melhoria do sistemas de gerenciamento e querem que ele perca menos tempo no transporte mas simplesmente porque houve uma emergência sanitária, o que implica em dividir tarefas e lidar com as dificuldades domésticas que foram por séculos relegadas as mulheres apenas, como proceder? Não apenas isso, as terapias comunitárias, as missas, e a caminhada para filosofar, elas são mais importantes do que conter a infecção? De certo ir ao barzinho, não seria, muito embora muitas pessoas continuem indo. Sociedades, como indivíduos, não parecem ser capazes de perder o condicionamento do consumo facilmente, mas era realmente necessário que o limiar fosse apenas a necessidade de tomar cerveja com os amigos? Ou de cortar o cabelo? Até mesmo o uso de máscara em lugares fechados se tornou um problema.
Quando engenheiros me disseram que iriam usar a tecnologia para recuperar o rio Doce, perguntaram a minha opinião. Eu respondi: “A minha sugestão é muito difícil de colocar em prática. Pois teríamos de parar todas as atividades humanas que incidem sobre o corpo do rio, a cem quilômetros nas margens direita e esquerda, até que ele voltasse a ter vida”. Então um deles me disse: “Mas isso é impossível”. O mundo não pode parar. E o mundo parou.
Krenak, Ailton. O amanhã não está à venda (p. 3). Companhia das Letras.2020
A ideia de humanidade se encontra em dissensão. De um lado uma concepção de humanidade afinada com princípios civilizatórios ocidentais e cristãos — do outro lado todas as outras. A concepção de humanidade dos povos originários e dos povos isolados, por exemplo, e a concepção das populações marginalizadas, na Bolívia, na China ou na Nigéria são bem diferentes tanto da primeira como entre si. O vírus, no entanto, não viu diferença alguma — e no momento em que este artigo é escrito já infectou mais de 14 milhões de pessoas no mundo todo em cerca de oito meses, e o Brasil é o segundo epicentro da pandemia. Fato é que não existe uma cura ou vacina para o vírus até o momento além da própria imunidade pessoal. O que esta sentença não permite notar, no entanto, é que a sociedade e a organização social são mais importantes do que a taxa de anticorpos do indivíduo; e nesse caso não se alega que a imunidade de rebanho seja a saída (novos estudos indicam que pode não ser), mas que a disparidade social bem como o descuido das autoridades com a população nunca foi, em muitos anos da história recente, tão evidente.
O momento não poderia ter sido pior. Um governo que prima por desbaratar e assolar qualquer política pública que preze pelo bem social (isso quando não faz rebranding destas mesmas políticas, em uma manobra demagógica) em favorecimento de políticas neoliberais foi eleito após uma campanha baseada em Fake News do início ao fim. Até então nenhuma recessão pareceria pior do que aquilo que haveria de vir. Ainda havia esperança. Agora, com milhares de pessoas a mais de cem dias isoladas em suas casas, as instituições e muitos comércios fechados e com analistas prevendo uma leva gigantesca de famílias entrando em pobreza extrema no próximo ano, nunca foi tão importante procurar novas fontes de sabedoria e aconselhamento.
Nesse sentido o depoimento da Dona Manoela é essencial. Ela vive em Cuiabá há mais de 35 anos, e, aposentada, tem tido suas atividades todas suspensas por causa da pandemia. Quando entrevistada ela fala um pouco sobre isso e sobre o que ela espera de um mundo pós-pandemia — um mundo o qual ela pode não presenciar, como ela mesma diz, mas que certamente virá, para benefício de todos.
Feita em duas ocasiões as conversas com Dona Manoela tratam da perspectiva que se perdeu com o excesso de notícias e informação. Seu jeito simples e direto de falar é o que em essência se chama de sabedoria popular. Impedida de estudar pelo pai, e levada pela necessidade a trabalhar na roça quando casada, ela criou nove filhos, a maioria dos quais fizeram universidade. Cuida das suas plantas no fundo de casa e recebe (recebia) as visitas sempre com “vamo entrando” seguido pelo “vai um cafezinho?”. Ela, no entanto não é desinformada, e sabe muito bem o que está acontecendo no mundo, sempre conversando sobre atualidades. Como é comum nas ocasiões em que a família precisa se unir, os filhos se revezam para cuidar que todas as necessidades dela estejam sanadas ao mesmo tempo em que precisam respeitar eles mesmos o distanciamento.
Já para o professor de meditação Aniccāvatasankhārā Uppādavayadhammino (Robson Almeida), baseado no interior de São Paulo, o que esta acontecendo é muito triste, e está sim, em vias de agravamento, o que exigirá muita paciência de todos, mas é, também, inevitável. Para ele, a mudança de paradigma se dará aos poucos, puxada por aqueles que ousarem serem mais fortes que o ódio e irem mais longe pelo amor.
A receita, porém não é tão simples. Metta, um termo na língua original do Buda que descreve “o mesmo amor que a mãe sente pelos seus filhos, porém dirigido a todos os seres” é o estado natural de uma mente pura, coisa que não se encontra fácil nestes dias. O trabalho consiste, em essência, em purificar a própria mente e agir eticamente no mundo através de um código de conduta simples porém eficiente chamado Silla: não matar, não roubar, não mentir, não agir de maneira sexualmente inapropriada e não usar intoxicantes ou drogas. A meditação, que é o ensinamento budista mais famoso, se chama Vipassana (que se lê como Vi-pás-sana), um termo que pode ser traduzido como “ver as coisas como elas são”.
(…) O importante não é lamentar a perda, mas, criar eticamente algo na variação contínua da existência. (MAGNAVITA, 2012).
De todas as maneiras pela qual a dominação global do capitalismo poderia ser afetada, a mais provável é a de falta de consumidores. O declínio da população, já prevista para as próximas décadas, parece agora ter acelerado. Isso, no entanto, não significa o fim da civilização. O padrão já mudou, é questão de tempo para que a estrutura também mude. Aos poucos as pessoas aprendem que poucas coisas são realmente essenciais, e que entre elas está o acesso à saúde e educação de qualidade e gratuita. O distanciamento social pode ser uma medida que remonta à quarentena medieval das cidades empesteadas, mas isso só foi necessário porque o próprio sistema falhou com os seus, e ainda falha, neste momento, enquanto empregados precisam pegar ônibus lotados para o trabalho e milionários vão de jato com UTI para os melhores hospitais. Não à toa dizem que a pandemia escancarou nossa desigualdade rompante, ela também exige de nós algo mais que apenas esperança; o desmatamento da Amazônia pode ser início de novas pandemias, e o aquecimento global o aumento dos oceanos. As mesmas crianças que estão sem aulas hoje porque não podem pagar escolas particulares, terão elas mesmas crianças que irão perguntar o motivo de não havermos contido a devastação. As cidades e os telefones já são inteligentes, quando as pessoas serão?
REFERENCIAS
Azevedo, Maria Thereza (org). Cidade Possível, 100 em 1 dia: pensar, experimentar e reencantar a cidade. 2017. Ed. CRV. Curitiba, PR.
BRITTO, Fabiana Dultra; JACQUES, Paola Berenstein. Cenografias e corpografias urbanas: um diálogo sobre as relações entre corpo e cidade. In: Cadernos PPGAU/UFBA. Ano 6, número especial, 2008, p. 79–86. Salvador: PPGAU/UFBA, 2008
HORI, Paola. Práticas urbanas inovadoras, insurgentes, democráticas. In: XI. Colóquio QUAPÁ-SEL, 2016, Salvador. Anais.
KRENAK, Ailton, O amanhã não está a venda. Companhia das Letras, 2020.
Magnavita , Pasqualino Romano. Cidade, cultura, corpo e experiência. ReDObRa. número 10, ano 3, 2012, p.
Seldin, Claudia. Práticas culturais como insurgências urbanas: o caso do Squat Kunsthaus Tacheles em Berlim. Rev. Bras. Estud. Urbanos reg., v.17, n.3, p.68–85, Recife, set./dez. 2015