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Algumas impressões pessoais sobre minha infância na fronteira do desmatamento na bacia amazônica

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Como assistir uma série norte-americana de direita refrescou minha perspectiva sobre a vida no norte

Eu vivi metade da minha vida em uma cidade do interior com poucas opções de entretenimento (a internet lá, até hoje, é bem ruim). Não é de surpreender, portanto, que eu quisesse passar a outra metade dela correndo atrás do prejuízo. Não apenas lendo artigos, verbetes da wikipédia (que fez vinte anos agora) e consumindo memes, mas também conhecendo nova música, novos filmes e novas séries. Em que pese tudo isso acontecer na segunda metade e não na primeira, indica um viés ideológico inevitável, uma vez que minha personalidade estava construída e tudo o que eu via passava pelo crivo desta mesma personalidade.

Falo isso porque eu comecei a assistir Justified, uma série da FX. Segundo o autor do “1001 Séries Para Ver Antes de Morrer”, Justified está nesta lista porque: “Em um panorama televisivo que algumas pessoas consideram que tende cada vez mais para uma visão de mundo esquerdista, alinhada ao partido democrata americano, Justified é visto como um antídoto: uma produção orgulhosa de ser de direita, ambientada em meio aos pobres brancos do sul. Na realidade, a série transcende a política, e a empatia que ela tem por todos os personagens, inclusive os mais monstruosos, é universal”. Também, dá um panorama político do caldo social que elegeria Trump em 2016.

Eu até parei de assistir game of thrones (todo mundo já me avisou que o final é mal feito) para acompanhar essa, que se encerrou com seis temporadas em 2015. O motivo foi, primeiro, que era uma série fora do hype, já sazonada, e segundo, que era bem avaliada pelos críticos. Essa resenha me encorajou, pois nada melhor do que a arte para revelar aquilo que tentamos ocultar de nós mesmos. E já não era sem tempo que deveríamos olhar para o espectro político da direita sem preconceitos, mas por aquilo que ele é. E a série faz isso de maneira madura e com grande valor de entretenimento.

Já, essa cisão que eu apontei na minha vida, definitivamente é um pouco arbitrária, e não posso dizer que vivi na caverna e de um dia para o outro eu estava fora. Aos quinze anos tive a oportunidade de passar seis meses com minha tia em Campo Grande, e ali tive a chance de conviver com primos que estudavam para entrar na faculdade, fãs de música, HQ e cinema. Me levaram para passeios várias vezes, e até me apresentaram magic the gathering, o que abriu o meu mundo em cento e oitenta graus. Era, então, a época da popularização da internet, e conheci ali o mIRC, por exemplo, e o ICQ. Mas foi tudo muito rápido e intenso, como são as coisas nessa idade. Na volta para minha cidade no interior eu entraria em um relacionamento longo complicado que me isolou de todo o resto de vez. Com o fim do relacionamento, aos dezoito, tudo o que sobrou para fazer era juntar os cacos da minha vida e recomeçar. Foi o que fiz, e a cola que eu usei era muita festa, amigos, álcool e ocasionais atividades delinquentes.

Já, quando vejo a vida no interior do Condado de Harlan como retratada na série, em meio às montanhas do Kentucky, entre “hillbillys”, caipiras das montanhas com sotaque puxado, com suas cidades e forças da lei enfrentando infiltração de drogas pesadas ao mesmo tempo que ignoravam o uso cotidiano de maconha pela razão simples de, naquele contexto, ser um mal menor, revejo às vezes a situação da minha cidade e das cidades próximas (peixoto de azevedo, matupá e mesmo guarantã do norte). Isso porque se a minha cidade era a menor e mais monótona de todas, haviam ao seu redor outras opções melhores, mas não muito melhores. Se armas de fogo fossem muito comuns, certamente teríamos um tipo de Condado de Harlan na fronteira amazônica. Não que não houvessem, apenas não é tão ridiculamente abundante como vemos entre os americanos.

(Esse fetiche por armas de fogo eu já vi em um amigo, o mais maluco que andava entre nós naquela época; nada de incomum para quem conhece as quebradas de uma cidade grande hoje, mas muito incomum naquela época e naquelas terras. Mais tarde ele mesmo levaria um tiro, sem nem mesmo por isso se afastar daquela vida. Assistindo a série policial Justified fica evidente o potencial transformador que a arma de fogo, se espalhada entre a população, possui. Não vou dizer que é para melhor ou pior, mas certamente revolucionária frente ao cotidiano de qualquer sociedade. A cultura armamentista tem como mote a autoresponsabilidade, além do direito à autodefesa, muito embora essas virtudes não impliquem em ter uma arma para serem cultivadas. Matar, fica evidente, é melhor que morrer, e, por extensão, do que ser humilhado, ou traído ou enganado, etc.)

ideia

Isso também encontra paralelo quando penso na corrida do ouro dos anos oitenta, a explosão populacional daquelas cidades, fundadas justamente dentro do espírito colonizador da época, como o destes garimpeiros — e que tiveram que se reinventar quando todos partiram para outra área para explorar. Hoje o termo garimpeiro remete a coisas horríveis (link mini- documentário da TV Folha “Garimpos em MT põem em xeque capacidade de fiscalizar mineração”), a todo o mal que fizemos ao planeta e às espécies e povoados inocentes que habitavam harmoniosamente na natureza. Ignora-se, no entanto, que muitas destas formas de exploração eram incentivadas pela ditadura vigente, pela promessa de enriquecimento fácil, e até mesmo pela verve humana pré-capitalista de explorar, descobrir e dominar, naquilo que ficou conhecido como ecologia imperial (link artigo wikipedia, em inglês).

Afinal de contas, o problema não é que o mundo estabelece limites para a fantasia, mas que a fantasia estabelece limites para o mundo. A ilha da infância. Knausgård, Karl Ove.

eu minha irma e meu pai Minha irmã, meu pai na fase barbuda e eu

Meu pai foi um destes caras. Ele depois voltou-se para a extração de madeira e depois ainda para transporte de cargas, e o garimpo mesmo, naquela região, foi há 25 anos, já. Lembro que a vida destas pessoas não costuma ser nada fácil; as zonas de exploração são frequentemente terras sem lei (uma fama do estado do Pará até hoje), morre-se muito, ou violentamente ou de malária, e o dinheiro que tão rápido se consegue, mais rápido se gasta, porque a natureza do garimpeiro é de incessante revolução, desgaste e atrito (quando se está bamburrado, o garimpeiro quer mais é aproveitar). Meu pai, pelo que me lembro, tinha um bar em uma destas zonas, coisa essencial para aguentar as longas horas de trabalho no mato; a amizade, quando lá existe, é também potente e duradoura. E talvez essencial para voltar para a casa vivo. Minha memória mais antiga daquele lugar, incluem a primeira vez que ouvi hey jude e uma revista playboy de junho de 1995 que estava jogada por lá.

Muita gente do nordeste vinha para aquela região, e sei porque meu pai andava muito com eles (um dos seus melhores amigos se chamava Paraíba e é amigo nosso até hoje). Imitava-lhes o sotaque, copiava-lhes o vocabulário, e até hoje ele usa termos como jega para colchonete, binga para isqueiro e uma porção de outros que não recordo agora. Isso não é realmente uma novidade, e quando estudamos os movimentos migratórios daquela época, descobrimos que foi quando a ditadura fazia de tudo para trazer pessoas do nordeste para áreas que ela queria explorar e manter no norte. Hoje, outros tantos contingentes do tipo estão trabalhando nos frigoríficos das cidades ricas do estado como Sorriso e Lucas do Rio verde, repetindo um movimento migratório iniciado já há mais de trinta anos.

Assistir Justified, no começo, portanto, pode ter sido pela curiosidade de ver como funcionava esse “antídoto” contra o esquerdismo da televisão americana (e que se resume àquilo que já sabemos, culto à Ordem, à Autoridade constituída e Respeito às leis), mas se eu fiquei (quarta temporada já acabou, e só tem ficado melhor) foi pela “empatia universal” mesmo pelos personagens monstruosos. E, assim como quando eu era criança e não tinha quaisquer julgamentos pelo que acontecia já aquela época com a Amazônia, e só queria que meu pai voltasse para casa e que me trouxesse um brinquedo, eu tenho aprendido a não julgar tanto a população pobre que recorre àquilo que pode para sobreviver, mas sim essa política caquistocrata que se aproveita disso para se insuflar de populismo sem de fato oferecer uma opção sustentável, não-destrutiva e de longo prazo.

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