Caspar David Friedrich “Greifswald in Moonlight” Creation date: (1817)
Acostumemo-nos a afastar de nós a pompa e a levar em conta a utilidade das coisas, não seus ornamentos. Sêneca. Sobre a ira/Sobre a tranquilidade da alma: Diálogos. Penguin-Companhia.
Foi no filme do Richard Linklater chamado Waking Life (2001) que encontrei uma de minhas citações favoritas a respeito de filosofia, aquela em que um entrevistado afirma que em dois mil e quinhentos anos de história a humanidade havia descoberto como chegar à lua e fissurar o átomo mas não havia ainda respondido às questões mais básicas da filosofia. O historiador Yuval N. Harari teria dito algo semelhante, mas de um ponto de vista contrário: o mundo não dá sinais de que vai esperar as respostas que a filosofia busca antes de desenvolver coisas como inteligência e consciência artificial, bem como manipulação genética e manutenção indefinida da vida — mesmo que isso vá de encontro a todas as crenças filosóficas e religiosas — justamente porque não dá para esperar as respostas enquanto a tecnologia avança tão rapidamente.
Nisso eu preciso confessar que sempre me pego pensando em temas que nunca são pontos pacíficos para ninguém. E não é apenas coisas como “e se eu não houvesse nascido?” ou “existe algo de real além daquilo que me aparece?”, questões que eu tinha quando criança mas que com o tempo desapareceram do horizonte. Tenho me perguntado coisas como a possibilidade da eutanásia e se eu sou ou não a favor de aplicação da eutanásia em casos como a completa falta de vontade de viver ou até a impossibilidade de viver. Sobre este assunto eu lembro de dois filmes maravilhosos imediatamente. O primeiro é Mar Adentro (2004) e o segundo é o escafandro e a borboleta (2007). Nestes filmes temos dois protagonistas que morrem por vontade própria sem cometer nenhum ato contra si mesmo. Mas não precisamos ficar só no cinema.
Na história da filosofia temos posições contrárias e neutras, como a de Thomas Hobbes (1588–1679), que era contra porquê, segundo ele, iria banalizar a morte. Stuart Mill (1806–1973) por sua vez dizia que talvez, uma vez que tudo que fazemos com nosso corpo só diz respeito a nós mesmo. Ambos concordam que o problema com a eutanásia está em aplicar em alguém sem consciência decisória (Revista Superinteressante setembro 2019, p.79). Também, houve uma vez um mestre Zen Budista chamado Tanzan que decidira morrer e, anunciando com sessenta cartas de despedida, de fato morrera logo depois (Zen Flesh, Zen Bones de Paul Reps). Se suicidara só com força de vontade, morrendo no sono trinta minutos depois. Sêneca, o filosofo estoico, condenado à morte por Nero, cortou as veias e ali esvaiu-se, assistido por amigos e pelos militares que ali estavam para que garantir seu “suicídio”. Quando viu as lágrimas de seus amigos ele diria supostamente seu último aforismo: que não há porque chorar quando a vida toda é motivo de lágrimas. Noutro cômodo sua esposa fazia o mesmo pela pura razão de acompanhar seu esposo tanto na vida quanto na morte (ela foi revivida depois). No cânone budista você encontra também um texto onde Buddha dá aval para um suicídio de um discípulo leigo, onde, após resolver suas pendências no mundo, decide “usar a faca”, ou seja, se matar, porque sentia uma dor física muito grande.
Só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, vem depois. Camus, Albert. O mito de Sísifo . Record.
Algumas pessoas, aparentemente, acalentam o próprio suicídio a vida toda justamente porque assim se mantêm no aparente controle, entretecidos com a ideia de ter uma saída sempre à mão. De fato, é assim que começa o excelente Lobo da Estepe do Hermann Hesse. Mas no mundo real e não no mundo das ideias, o suicídio é certamente um problema econômico e social. Estima-se que pelo menos 135 pessoas são afetadas diretamente com um suicídio de uma única pessoa, gerando luto, problemas psicológicos e psicossociais (BBC News). Por isso e outras coisas que este não é um tema fácil de resolução. E me surpreende a proximidade deste número com o de outra pesquisa onde foi estimado que uma pessoa, por limitações evolutivas, tem no máximo 150 pessoas em suas redes de amizade, que é provavelmente a média de pessoas que viviam nas tribos caçadoras coletoras na aurora da espécie (e sim, “mil amigos no Facebook” é apenas uma história que contamos para nós mesmos).
Eu e minha esposa já fizemos um curso no CVV (centro de valorização da vida) e fomos voluntários lá por um curto período de tempo, de modo que conhecemos um pouco daquela realidade. Lá se aprende e se exerce a nobre arte de escutar sem julgamento. Para minha surpresa aprendemos quando fizemos o curso, que não estamos lá para aconselhar ninguém, mas apenas para ouvir e simplesmente estar lá. Parece fácil mas não é. E aprendemos também, nem sempre quem liga está pensando em suicídio (acho que até a maioria). E parece-me que nem mesmo quem se mata está pensando em suicídio e nas suas consequências — a paixão dos suicidas que se matam sem explicação, como dizia o Poeta. Assim como existem muitas pessoas que se matam apenas por negligência. Isso porque ao contrário do que a máxima nietzschiana costuma dizer, nem tudo o que não nos mata nos torna mais forte, mas apenas aquelas batalhas que conseguimos superar.
O suicídio é uma condição humana, imagino, desde sempre, mas nem por isso se tornou de mais fácil compreensão. É sabido que o suicídio é mais comum em sociedades violentas e em indivíduos com acesso facilitado a armas letais (os policiais brasileiros, por exemplo, cujos suicídios já superam as mortes em ação por bandidos), mas, claro, sabemos também de inúmeros casos de elaborados suicídios usando elementos não-letais (como do da Virginia Woolf que encheu seu bolsos de pedras e entrou em um rio). É possível até afirmar que existem dois tipos de suicidas: suicidas em potencial, que persistem, por assim dizer, na ideia de concretizar a própria morte, e aqueles que apenas em um momento de muita dor, em um impulso cego, decidem tirar a própria vida (e é possível que uma mesma pessoa seja dada às duas tendências). Em última instância todos eles são suicidas, mas o último pode ser prevenido com mais facilidade que o primeiro. O primeiro, embora mais profundamente convencido de que deseja se suicidar é, talvez, o mais provável de nunca o fazer. Isso porque ele se acostuma com sua dor e porque aprende a colocar mais um dia à frente de sua data fatal. E em termos de políticas públicas o segundo tipo de suicida pode ser prevenido, mas não o primeiro. O primeiro tipo, em termos de filosofia, não tem uma “solução definitiva” e provavelmente vai ficar assim mesmo.
Cento e trinta e cinco. Apenas um número, decerto, mas quando observo em mim os efeitos devastadores das perdas de amigos próximos, entendo finalmente, com toda a sua magnitude, o significado deste número. Cento e trinta e quatro pessoas sofrendo como eu, imagina, escrevendo textão. Com cento e trinta e cinco pessoas já encheríamos um grupo de whatsapp, começaríamos um negócio, mudaríamos o mundo. Mas não, estamos em luto, um luto permanente, como uma nuvem que nunca se dissipa, nos lembrando de cada um destes amigos perdidos: um universo em si mesmo. E quando finalmente trago (tento pelo menos) à luz as causas destas perdas tão prematuras vejo que tudo parece algum tipo de suicídio, mesmo sem evidências ou explicações. Não paro de pensar em como, nem por um minuto, buscando razões. Para mim cada um deles era um sol brilhante e agora está irremediavelmente apagado. Alguns realizaram o ato de uma vez, como o Danilo, Kleber e o Leuzimar, enquanto outros o fizeram aos poucos ao longo de anos de negligência contumaz consigo mesmo, como o Gnomo. E a todos eles eu dedico minhas orações e meu silêncio, minhas palavras e meus melhores pensamento. Gostaria de ter uma sacada genial aqui para trazer alguma relevância e um ponto de vista ainda inexplorado sobre este assunto mas a verdade é que um cego não pode guiar outro cedo e do mal que os atingiram eu nunca vou me dizer imune; é preciso se cuidar, no entanto, mesmo que seja apenas para cuidar dos outros.