“Aconteceu que um incêndio irrompeu nos bastidores de um teatro. O palhaço saiu para informar o público. Eles pensaram que era uma zombaria e aplaudiram. Ele repetiu seu aviso. Eles riram ainda mais alto. Então, eu acho que o mundo chegará ao fim em meio ao aplauso geral de todos os que acreditam que é uma piada”.
Kierkegaard, Søren
Há cerca de um mês atrás eu e a Fatima fomos convidados a sermos padrinhos da filha da Marcela, Larissa e também da filha da Samylla, Hayanne. Grande alegria para todos os envolvidos, as meninas estão crescendo a olhos vistos e as mães delas são pessoas incríveis. A Fatima evidentemente sente o mesmo e não parou de falar no assunto e planejar o acontecimento até o grande dia. Isso aconteceria em Terra Nova, cidade em que cresci, e logo depois do batizado fomos à casa da minha tia e da Samylla. Estourou uma grande tempestade naquele dia, que nunca vou me esquecer.
Terra nova do Norte, 500 km ao norte de Cuiabá é Amazônia. O bioma é cerradão, a bacia hidrográfica é amazônica e não muito longe temos o Pará e aqueles rios caudalosos. Em Nova Guarita, mais ao norte, temos o rio Teles Pires, também chamado São Manuel(“nunca dês um nome a um rio/ é sempre outro rio a passar”, já dizia o poeta), lugar que pedalei para conhecer em 2016, já morando em Cuiabá há dez anos. Eu só me interessei efetivamente nesta pequena viagem após aprender a usar o GPS do celular e os aplicativos de mapeamento: “até que não é assim tão distante” pensei. Claro, o mapa não é o território, e quando cheguei lá (link para mapa) vi que não havia estrutura para acampar e só pude armar a barraca embaixo de uma estrutura abandonada e precária que havia lá — só para descansar o mínimo necessário antes de pedalar de volta.
Neste rio eu tive a experiência de estar em meio à devastação que já ocorria naquela região. Como é de se imaginar, não é de um dia para o outro que um lugar cheio de vida e biodiversidade desaparece — ele agoniza por algum tempo antes. Rios morrem, e nem é só de sufocamento como ocorreu em Mariana e Brumadinho — eles morrem afogando-se em si mesmos, se desbarrancando em assoreamento. Nem um pássaro canta na região. Não existe mais mistério e abismos — a floresta desafiando a razão contra si mesma. Aquilo que os indígenas aprenderam e vivem a respeitar e que é a coisa mais frágil que se têm notícia.
Mais informações: ouça este podcast do Le Monde Diplomatique Brasil entrevistando R. Abramovay.
As piores “tragédias” são aquelas que poderiam ter sido evitadas. Como o incêndio da Boate Kiss, ocorrido há sete anos atrás em Santa Maria, Rio Grande do Sul. 242 pessoas inocentes morreram naquela noite, incluindo funcionários, estudantes universitários, pais e mães, porquê alguém achou que tampar todas as saídas com vedação contra vazamento de som era uma boa ideia. Também, a soma de terríveis e agourentas variáveis, como o desconhecimento da potencial mortalidade da fumaça advinda da queima da espuma de revestimento, contribuíram para uma das maiores tragédias do Brasil e do mundo em lugares fechados. Eu estava na casa da minha tia, nos fundos da nossa, no dia que eu vi a notícia e poucas vezes me senti tão triste.
Naquele dia eu senti meu coração sendo esmagado sem nem ao menos saber porquê — as lágrimas rolavam sem esforço, o rosto crispado e uma sensação de desamparo cósmico e indiferença divina, como sói a tragédia pode nos trazer. Lendo o livro da Daniela Arbex tantos anos depois, vejo que ainda hoje não identifico a origem da dor, mas que ela ainda está pulsante em mim. Talvez pior.
O lado da minha mãe na família é todo do Rio Grande do Sul, como muitos dos descendentes no interior do Mato Grosso — um projeto do governo de colonização do centro-oeste ofereceu possibilidades para famílias que se aventurassem a viver no território. Disputas com indígenas no sul e uma espécie de corrida ao ouro no norte contribuíram para mais uma leva de migrantes. Minha mãe mesmo nascera em Alpestre, 328 km de Santa Maria, de modo que sinto uma conexão especial com o povo gaúcho, só aumentada pela insistência do meu vô em manter a tradição viva até hoje.
(…) mais de 9 mil anos potenciais de vida perdidos, considerando-se a expectativa de vida do brasileiro em torno de 75 anos. Não havia como ficar imune ao sofrimento provocado pela tragédia.
Arbex, Daniela. Todo dia a mesma noite . Intrínseca. Edição do Kindle.
A tragédia ainda procura sua redenção. Notícias mais recentes apontam que o primeiro júri criminal acontece em 16 de março. Ainda que nada traga de volta os filhos para os pais, e nem seja capaz de fechar as feridas que uma sociedade inteira carrega, já é alguma coisa. Conhecer os detalhes daquela noite é também conhecer a história de heróis e líderes genuínos nascidos no mais escura das noites. Também é saber que a dor dos sobreviventes e de quem fica para recomeçar é pungente e também uma grande demonstração de heroísmo.
Quando jovens morrem a dor parece ser muito maior. Isso porque supõe um futuro roubado. Toda uma história que não vai mais acontecer. Incita rebeldia, raiva e desespero — até hoje estão grafitados na porta da boate kiss o pedido de justiça. A sociedade toda se une pedindo por justiça e movimentos sociais são fundados. Infelizmente não existe o mesmo entusiasmo quando o futuro de milhões de crianças é ameaçado pela mudança climática acelerada (senão causada) por ação humana: desmatamento, poluição e adoecimento progressivo da população. A Amazônia ela mesma em uma possível transição para uma situação de não-retorno.
Para piorar temos no governo do país mais importante do mundo um bufão negacionista, e, não bastasse isso, outro negacionista na presidência de nosso próprio país. Meio bilhão de animais foram consumidos nas chamas da Austrália, e lá também há um governo negacionista. Mas independente do nosso sentimento, o mundo está se aquecendo e mesmo que não seja nem na minha nem na próxima geração, a conta vai chegar. Mas algumas pessoas já começam a acordar. Uma comunidade indígena vítima de agrotóxico receberá indenização de R$ 150 mil. Crianças estão processando o governo dos EUA pelo aquecimento global. Isso parece pouco mas em jurisprudência tudo é questão de uma primeira vez.
Também: cartilha para crianças que explica direito a um meio ambiente seguro, saudável e sustentável é lançada pela ONU (baixe neste link). Quando penso nas minhas afilhadas lembro que não é apenas comigo que devo me preocupar, e quando penso no mundo que quero deixar para a próxima geração, é nelas que quero focar meus esforços: um mundo cândido, onde tragédias evitáveis não ocorram e em que elas possam acreditar e ter fé outra vez.