— Posso ver mais longe que você, Loki. Posso ver tudo, daqui até a Árvore do Mundo — contará Heimdall, em seu último suspiro. — O fogo de Surt não pode alcançar a Árvore do Mundo, e dois mortais se esconderam em segurança no interior do tronco da Yggdrasill. A mulher se chama Vida, e o homem se chama Desejo de Viver. Seus descendentes vão povoar a terra. Não é o fim. Não há fim. É simplesmente o fim dos velhos tempos, Loki, e o começo de novos. O renascimento sempre se segue à morte. Você falhou.
Mitologia Nórdica (Gaiman, Neil)
Vivemos em tempos de ceticismo e descrença. Não meramente passiva dúvida, mas ostensiva luta contra qualquer tipo de fé. Eu sei. Eu também fui assim.
Para mim era natural abrir a boca e estufar o peito para dizer: sou ateu. Ou niilista. Ou agnóstico. Mesmo sem nunca investigar muita coisa, eu atribuía, como um adolescente entre dois pais em divórcio litigioso, toda a culpa do sofrimento do mundo nas costas da religião milenar.
Como diz a canção: viver é fácil com os olhos fechados, sem entender nada do que se vê. Eu estava cego para tudo aquilo que a religião nunca fez. E o que ela não fez foi algo muito simples, mas de importância inegável. Ela não deixou a humanidade desagregar.
Ainda que através de mitos e sonhos compartilhados. Ainda que através de mentiras repetidas à exaustão até se tornaram indistinguíveis da verdade, a religião é a responsável direta pela civilização tal como conhecemos hoje. Muito antes das corporações e sociedades anônimas ela sozinha junto milhares de pessoas em torno de um único propósito e um único sentido.
Aquele que se diz ateu e que briga com seu vizinho para que deixe de acreditar em mentiras é tão fanático quanto qualquer pessoa que crê e não aceita crenças diferentes. Eu vi, quando morava em uma república de estudantes há muitos anos atrás, um homem que abusava de drogas se tornar evangélico do dia para a noite e passar a andar pelas ruas com uma bíblia na mão.
Também vi pessoas terem recaídas por motivo nenhum além de estarem entediadas. Ou abandonarem o vício com nada mais do que ajuda de companheiros de jornada, reuniões e conversas exaustivas. Dentro de cada um jaz latente a semente da renovação.
Voltando à religião. Eu estudei por nove anos um curso que normalmente levaria quatro por nenhum outro motivo além de não saber bem o que eu queria. Mas este curso, que eventualmente foi concluído, foi responsável por abrir meus olhos para a miríade de criações humanas que temos à disposição para tornar nossa vida menos árdua. Também me ensinou o verdadeiro valor da religião. E uma coisa se relaciona com a outra, como não poderia deixar de ser.
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Em algum momento Deus criou o homem. Ou será o homem quem criou Deus? Que diferença faz quando ainda não somos capazes de amar nosso vizinho ou enxergar nosso irmão? Nenhuma, eu digo. Também digo que a busca desta resposta por si mesma é, já, religião, e que em dado momento a fé brilhará naturalmente no caminho do buscador.
Só a profundidade e a beleza da religião é suficiente para justificar sua existência. Penso nos milhares de monges meditando na Tailândia na primeira lua cheia de maio, a visakha puja. Penso na peregrinação que cada crente do Islã precisa fazer à Meca. Ou na santa missa que acontece ao mesmo tempo e no mundo inteiro todo domingo com a mesma diligência e cuidado, quando digo isso.
“Deus fez a lama” (…)
Deus se sentiu solitário
— Então Deus disse a um punhado de lama: “Sente-se!”
– “Veja tudo que eu fiz”, disse Deus, “as montanhas, o mar, o céu, as estrelas”
– E eu era o punhado de lama que se sentou e olhou em volta
– Sorte minha, sorte da lama
— Eu, lama, sentei e vi que Deus havia feito um bom trabalho.
— Muito bem, Deus!
— Ninguém teria feito melhor, Deus! Eu jamais teria conseguido.
— Me sinto muito insignificante comparado a Vós.
— Só me sinto um pouquinho importante quando penso em toda lama que nunca sentou e olhou em volta.
— Recebi tanto, e o resto da lama recebeu tão pouco. (…) Agora a lama vai se deitar de novo e dormir.– Quantas lembranças para uma lama!
— Quantas outras lamas sentadas interessantes conheci!
–Gostei de tudo o que vi
– Boa noite.
— Vou para o céu, agora.
— Mal posso esperar … (…)– Amém.
Cama de Gato (Vonnegut, Kurt)
Isso só para ficar nas religiões com mais seguidores no planeta; e se eu te dissesse que existe numa ilha minúscula do Japão um povo antiguíssimo que acredita no espírito das coisas; que cada homem sempre reencarna como homem, e cada mulher como mulher; onde “eles acreditam que o mundo repousa sobre as costas de um grande peixe que causa terremotos quando se move”? Como não se fascinar, eu pergunto.
O mesmo vale para as crenças de nossos próprios povos ancestrais. Não se pode negar a ciência e mesmo a dúvida que ela traz; é uma posição epistemológica e uma arte acreditar não em uma mas em múltiplas verdades; linguagens diferentes para dizer a mesma coisa produzem a impressão de multiplicidade; mesmo uma crença inventada como a dos Bokonismo do Vonnegut parecem apontar uma verdade universal, única e inatingível. Ciência e religião não se auto destroem, e isso basta.