The Three Trees — Rembrandt
(…) E então naqueles dias íamos aos cineclubes ver filmes mudos, porque eu, com a minha cultura, não é mesmo?, e você, coitadinha, não entendia absolutamente nada daquela estridência amarela convulsa anterior ao seu nascimento, aquela emulsão estriada onde corriam os mortos; mas de repente Harold Lloyd passava por ali e então você sacudia a água do sono e no fim se convencia de que tudo tinha sido ótimo, e que Pabst, e que Fritz Lang. Você me exauria um pouco com sua mania de perfeição, com seus sapatos rotos, com sua recusa a aceitar o aceitável. Comíamos hambúrgueres no Carrefour de l’Odéon, e íamos de bicicleta até Montparnasse, até qualquer hotel, até qualquer travesseiro. Mas outras vezes íamos em frente até a Porte d’Orléans, conhecíamos cada vez melhor a zona de terrenos baldios que fica para lá do Boulevard Jourdan, onde às vezes à meia-noite o pessoal do Clube da Serpente se reunia para falar com um vidente cego, paradoxo estimulante.
O jogo da amarelinha (Cortázar, Julio)
A internet é incrível. Se em cinquenta anos atrás, alguém dissesse que estaríamos disponíveis uns ao outros através de mensagens instantâneas, e que teríamos ao nosso alcance imediato toda a cultura e criatividade humana dos últimos milênios, quem iria acreditar? Quem está acreditando agora? Eu sei que mesmo sendo uma pessoa que abraça novidades muito rapidamente, algumas vezes eu tenho hesitado. Foi o caso do smartphone, por exemplo. Quando li em uma revista de ciência que estavam pesquisando e criando aparelhos com telas sensíveis ao toque eu não fui capaz de crer. Eu acho que tinha nove anos então.
A velocidade do avanço tecnológico em relação ao nosso próprio avanço civilizatório, e as consequências disto é um tema muito debatido atualmente. E neste campo, já tão explorado por pensadores como o Harari e obras de arte como Black Mirror e Westworld, eu humildemente aceito que não tenho muito a dizer. Mas eu vivi através destas transformações e por isso tenho algum lugar de fala — que é diferente de mera opinião, que todo mundo hoje tem (e nisso a internet é, às vezes, um pouco tonta). Eu admirava a ciência e cientistas enquanto crescia, e, embora tecnologia não seja a mesma coisa que ciência, eu gostava muito de conhecer as novidades tecnológicas também.
Foi nesta época que eu decidi fazer experimentos — mas eu estava mais para Einstein do que para Benjamin Franklin — era completamente teórico e fazia os experimentos na minha imaginação. Um destes experimentos era sobre um carro que flutuaria através das estradas usando magnetismo. Infelizmente essa ideia já tinha sido dos japoneses fazia algum tempo, o Maglev, e eu fiquei bastante frustrado quando soube. Também fiz planos completos para um carro do futuro e um carro que voasse, que não era nada além do DeLorean do filme “De Volta para o Futuro” — basicamente eu só tinha ideias que já eram conhecidas amplamente. E não pense que isso acabou depois que eu fiquei adulto — certa vez eu estava há uma semana em uma área de camping em Chapada dos Guimarães, já com 25 anos, e tive uma ideia incrível para acesso e uso de internet em todos os lugares de maneira completamente orgânica. A coisa era tão incrível que eu encerrei meu retiro para voltar para casa ver se poderia aplicar. Eu sonhara a IoT (Internet of Things, ou Internet das Coisas) e só soube algum tempo depois.
(…) as pessoas que marcam encontros exatos são as mesmas que precisam de papel pautado para escrever ou que apertam de baixo para cima o tubo da pasta de dentes.
O jogo da amarelinha (Cortázar, Julio)
Pensando nesses acontecimentos tenho uma tendência a crer que eu sempre tenho tentado criar algo por mim mesmo; e em quase todas as vezes eu tenho me frustrado. Não como Michelangelo, que queimou suas obras imperfeitas, mas mais como da Vinci que fez grande acervo de tudo que concebia e do processo mesmo de criar e descobrir, eu ainda tenho as minhas tentativas frustradas todas comigo. Em caixas e caixas na casa de meus pais estão desde cadernos com ideias para histórias de RPG a mapas elaborados de mundo de fantasia que eu nunca cheguei a acabar.
Para mim criar sempre foi algo bom em si mesmo e não um meio para um fim — e foi também uma maneira de viver que deu sentido à minha vida mesmo nos momentos mais difíceis. E quando se mistura cotidiano e arte, dificilmente se volta à vida de antes. Claro, o mundo do dinheiro não foi feito para isso — ele deseja produção e eficiência antes de você fazer algo para si e para seus amigos — e viver uma vida satisfatoriamente artística não é tão difícil, é apenas uma vida como as outras, ainda que com o propósito de fazer algo grande um dia — e nisso eu nunca fui capaz de avançar — estava simplesmente me divertindo. E tanto na ciência como na arte, nem sempre diversão substitui trabalho duro.
Isso me lembra aquela deliciosa anedota da mulher que desdenha da obra de um grande artista em performance com as palavras de que “aquilo não lhe custou nada”, ao que ele responde “este nada custou vinte anos de estudo e trabalho”. Se divertir enquanto se dedica a um projeto, no entanto, é essencial para o sucesso do mesmo projeto — principalmente porque o processo de criação, como todos os revezes, as durezas e as dúvidas, pode ser muito cansativo ou exigente e também porque, afinal, não somos máquinas nem pretendemos ser. E por sucesso quero dizer ter valor agregado e valer dinheiro.
Isso porque as pessoas ficam felizes na maioria do tempo em pagar por algo que lhes satisfaça de alguma maneira — e também porque é mais fácil assim. É tão louvável a atitude de um cara que só compra produtos originais para auxiliar o artista quanto a de um que usa o torrent para baixar tudo o que deseja porque ele admira a obra demais para conseguir viver sem — e ambos estão longes do consumidor médio. O consumidor médio deseja o que é mais fácil, simples e descomplicado, por isso que estes serviços de streaming vieram para ficar. Soma-se a isso um impulso de generosidade que as pessoas geralmente têm e que diz que se um artista consegue te fazer parar e prestar atenção nele ou na sua obra, então ele já merece seu dinheiro.
Talvez seja frivolidade, e Deus sabe como isso é possível, mas a criatividade, na minha vida, têm sido parte indissolúvel do próprio ato de viver — arte é a capacidade de não ser facilmente destruído pelo tempo. A vida não nos pede grandeza, a vida não nos pede sequer atenção, mas a vida nos pede coragem, e é preciso coragem para ser você mesmo. Fiz isto não apenas tentando inventar coisas, mas deixando que as coisas se inventem por si mesmas, e reconhecendo que minhas ideias por mais originais que pareçam, só o são em um recorte especial no tempo e na geografia; que eu tenha tido sozinho, aos 10 anos, uma ideia que os japoneses com toda sua inteligência, tecnologia e estudo tiveram, é para mim motivo principalmente de orgulho.