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Dengue boy e o fim da infância do nosso mundo

Comecei a ler hoje um livro absurdo de louco. De autoria de Michel Nieva, Dengue Boy se passa no ano 2200 e tantos e conta a história de um menino que nasceu híbrido de homem e Aedes aegypti. Conta também a história de miteriosas pedras mágicas descobertas na Antártida pós gelo e tantas coisas mais

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— Dengue Boy (@w4lker.com.br) Apr 22, 2024 at 22:51

capa

Começei a ler um livro chamado Dengue Boy. Era para tê-lo acabado, pois se trata de um livro de fôlego só, potente e curto, mas eu leio tantas coisas ao mesmo tempo que posso levar muito tempo para acabar uma obra simples. Isso não deve diminuir a importância e impressão que o livro ganhou em mim. Coloquei dengue boy como handle no bluesky1 logo que notei que estava lendo incrível. Ainda: parei a leitura para vir aqui e falar sobre o livro.

infância ou fim da infância?

O livro originalmente se chama La infancia del mundo. E com a leitura de alguns capítulos passamos a entender isso, que remete a umas pedras telepáticas descobertas no interior das calotas polares agora derretidas e exploradas à exaustão. Remete também à infância do mundo humano, o antropoceno, no qual habitamos - e, especialmente, à perda desta infância, em muitos níveis: nível macro, onde a humanidade perde a inocência e infância e se descobre responsável pelas mudanças climáticas e também no nível individual, onde o dengue boy se desenvolve e faz suas autodescobertas, incluindo aí sua sexualidade.

O autor, eu descobri na pesquisa prévia à leitura deste livro, é um poeta e ensaísta, formado em filosofia. Argentino e nascido em 1988. Entre suas obras mais notáveis estão:

  1. "¿Sueñan los gauchoides con ñandúes eléctricos?" (2013) - Uma coleção de contos que mistura a cultura gaucha com elementos de ficção científica, inspirada no clássico "Do Androids Dream of Electric Sheep?" de Philip K. Dick.

  2. "Ascenso y apogeo del Dea en coelus" (2016) - Um romance que apresenta um futuro distópico onde a sociedade é governada por inteligências artificiais

Este livro mais recente, traduzido para o português como Dengue Boy por Joca Reiners Terron (escritor nascido em Cuiabá e baseado em São Paulo, ficcionista de prosa especulativa de mão cheia) é editado e publicado pela Amacord, um selo de ficção contemporânea, inovadora e de crítica social da gigante Record.

um livro louco como é louco o mundo no qual se inpira

Eu me interessei por esse livro quando ouvi um episódio do podcast chamado Clube do Livro por José Godoy. Depois, quando fiz a pesquisa sobre o autor e conheci sua ativa participação em discussões sobre literatura e tecnologia, algo acendeu em mim. A tradução ser do brilhante Joca, finalmente, confirmou tudo. Eu tinha que ler esse livro.

Dengue Boy (2024) é uma obra de ficção científica que aborda um futuro distópico no qual a Terra foi devastada pelas mudanças climáticas e o neoliberalismo. A narrativa se passa em um mundo onde as calotas polares derreteram, elevando a temperatura global e tornando várias regiões inabitáveis. É 2272, e a história mistura elementos cyberpunk e aborda temas como colonização interplanetária, mutações genéticas, e a exploração extrema de recursos naturais. Através de uma narrativa fragmentada e cheia de referências culturais e tecnológicas, Nieva critica ferozmente o domínio das megacorporações, que monetizam até mesmo pandemias e catástrofes ecológicas, um conceito que Nieva chama de "capitalismo virofinanciero".

personagens e cenários e cenários como personagens

Vamos conhecer esse mundo ao lado de Dengue Boy, um híbrido humano/mosquito (pensei muitas vezes no filme A Mosca do Cronenberg lendo, mas também em Rick & Morty), que nasceu na periferia do caribe pampiano, onde um dia foi a Patagônia. Acompanhamos também, mais de perto, personagens secundários como o menino Dulce, que ao ajudar seu irmão mais velho a contrabandear mercadorias toma posse de uma pedra ancestral (descoberta quando exploravam petróleo nos polos agora derretidos) que possui poderes telepáticos; nos introduz também a febre do momento que é um console hiperimersivo chamado PAMPATRONICS, e seu jogo "Cristãos Vs Índios"; além do conceito de ovejínes, que eu me recuso a descrever aqui por falta de palavras2.

Como não acabei o livro, não sei exatamente qual será o desfecho do protagonista, e embora saiba o desfecho dos outros personagens, considero, por inferência e pensamento lateral, que o personagem mais importante é o planeta, as pedrinhas telepáticas e a franca decadência da sociedade humana. É, afinal, uma alegoria bastante clara a história toda, e é adorável ver o worldbuilding que Nieva faz. Nessa história se torce pelo conflito.

O estilo do autor é bem claro e direto. Existe espaço para vida interna dos personagens, onde os conflitos são mais bem desenvolvidos que no plano externo da história - que se resolve muito rapidamente. Não existe muita sutileza na prosa, mas a história nos cativa mesmo assim. E como já foi mencionado, se lê em uma sentada se assim desejar o leitor, tão curto é o livro e tão explosiva é sua história.

Os temas trazidos pelo autor não poderiam ser mais incisivos e relevantes: é uma abordagem da nossa relação com o mundo e as consequelências de nossa visão de curto prazo levado ao limite - acho que o background do autor com filosofia facilitou essa sua abordagem de pensamento de simulação, de elevação de um argumento ao absurdo, de imaginação sandbox. De fato, ele pegou a forma como nossa sociedade age em relação às mudanças climáticas hoje (inclua aí toda a ganância humana, sua corrupção e capacidade de jogar os menos favorecidos no mar por um índice melhor na bolsa de valores) e iterou isso por uns 250 anos. O resultado é um romance que te acerta com os dois pés no peito.

E quando vemos no jornal um estado inteiro dissolvido pela água, e quando acompanhamos enxurradas de fake news, de pessoas públicas e políticos tentando se aproveitar da tragédia de milhões, quando ainda calculamos o tamanho da tragédia em números que não expressam nem de perto o tamanho da dor e do sofrimento, esse livro se torna quase uma válvula de escape - os cientistas estão fartos de nos avisar do futuro sombrio que nos aguarda, mas me interessa também ler o que os artistas e os filósofos podem dizer sobre isso - e mais ainda uma obra que seja amálgama disso, como essa.

gostinho de quero mais

Ainda não acabei o livro, mas já sei do que gostei: sua proposta inovadora, seu mundo interessante e a trama surpreendente que nos entretém e diverte. Quero conhecer os ensaios do autor tão logo acabe esse romance; eu ensaiei ler antes dele um livro chamado Venomous lumpsucker, um livro igualmente de ficção especulativa, mas está em inglês e me pareceu um pouco exótico demais à primeira vista3. Talvez eu leia ele agora que estou tendo um vislumbre do que estas obras querem dizer.

Recomendo Dengue Boy para quem quer ler um livro que seja um escape das árduas notícias atuais - mas que não seja um escape realmente. Quem quer se divertir com uma ficção especulativa com elementos da nossa quebrada latinoamericana; quem gosta de ficção científica, sim, especialmente aquelas que não são tão ficcionais assim. Quem assistiu e gostou de Rick e Morty pode identificar também uma certa estética no humor corrosivo.


  1. Eu estou com mais de mil posts lá, já, o que evidencia duas coisas - primeiro, que esse blog está condenado a ficar apenas com textos maiores e mais raros, e que, eu não procurava exatamente um meio para apenas postar textos, mas um medium que pudesse, de preferência, trazer as pessoas para comentar, corrigir se necessário, compartilhar e manter o texto vivo. Infelizmente o blog, que já apanhava tanto da web 2.0, foi soterrado pela ascensão da IAs que geram texto. Difícil saber o que vem depois. 

  2. Ovejínes: "enquanto a ovejín era uma espécie de animal (palavra inexata, embora a mais próxima para descrevê-la) geneticamente modificado e patenteado pela empresa Ovejín, que consistia em nada mais nada menos que um órgão sexual com autonomia e vida própria, dotado de metabolismo próprio, e que em seus diferentes modelos oferecia satisfação ao mais amplo leque de perversões. A ovejín mais traficada, porém, era o modelo original: uma esponja amorfa de carne, moldável ao gosto do usuário, com um orifício para respirar, comer e foder e outro para defecar e foder e que, por odiar o confinamento, urrava com a impotência dos condenados." 

  3. Em um futuro distópico, onde a extinção de espécies é parte da indústria, Mark Halyard e Karin Resaint se unem em uma missão improvável. Halyard, executivo envolvido na destruição do habitat do peixe mais inteligente do mundo, o "lumpsucker venenoso", e Resaint, uma bióloga com intenções sombrias, precisam localizar o último espécime sobrevivente. A busca os leva por paisagens contaminadas e cidades flutuantes, enquanto desvendam uma conspiração maior. "Venomous Lumpsucker", ganhador do prêmio Arthur C Clarke é uma aventura cheia de humor negro e crítica ambiental. 

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