Eu lembro — quando tinha uns bons 18, 20 anos. Apaixonado, mas antes disso, precisamente a partir dos 16, já tragicamente louco. Irremediavelmente louco de paixão pela mulher com que me relacionava à época. Eu entregara por ela todos os meus planos, todas as relações familiares construídas à vida toda, e tudo que pedia era ser amado de volta. Minha vida ficou alvoroçada desde então. O que eu sonhava antes de ser tomado de assalto era ter uma vida normal, uma carreira profissional, enfim, correr atrás do que todo mundo corre.
Hoje observo as duas pontas se ligando — a carreira que nunca cheguei a ter e aquela paixão que eu vivi entre os 16 e os 18. Isso porque as mulheres são, em geral, ambiciosas e inteligentes; esta em especial era metaleira, e disse que eu deveria ser como aquele rapaz amigo meu, que, embora ela o odiasse, ela sabia que ia se dar bem na vida. Hoje eu vejo que de certa forma éramos ambos muito medíocres. Ela por achar que ele seria “bem sucedido” e eu não. Eu por acreditar. Se ter posses, carreira, esposa e filho é ser bem sucedido, então ele é, e estou feliz por ele.
O fato é que ela tinha uns bons seis anos a mais do que eu, e eu sempre respeito quem é até mesmo um ano a mais do que eu. E se aquilo que ela apontou em uma discussão memorável de casal é ser bem sucedido no mundo, então que seja. Aquele amigo do interior até conversa comigo de vez em quando, ainda que não sejamos próximos. Seu filho não se chama Thomas como um dia ele me disse que seria; mas, o que vem a seguir? Eu quero aquela minha paixão de volta. Ainda que me cegue, ainda que me enlouqueça.
Tenho uma amiga que só converso pela internet chamada Michelle. Ela está na Suécia, mas viaja bastante. Em algumas horas vi, através do stories, que ela saiu do frio e da neve para uma praia ensolarada. Cabo verde. Só percebo agora: pies de garoa pode ser relacionado com terra da garoa, São Paulo (que de garoa não tem mais nada, graças ao aquecimento global). Ele é talentosa e gentil é mais um exemplo de imigrante que ganhou o mundo. O mundo, aliás, não é para quem assim o deseja, mas para quem nasceu para ele como já dizia o poeta. Sonham juntos milhares de seres, mas sempre se reduzem a poucas as chances de sermos uma destas pessoas afortunadas. E nunca nos vemos para além de nós mesmos.
Contar o tempo é lembrar do que perdemos; um sinal que se acende, estou pressentindo uma crise interna. Para sermos um homem de verdade, completo e perfeito (onde nada sobra e nada falta) precisamos estar mortos? Por que não consigo conciliar o meu lado estoico e o meu lado suave, o lado nômade e o lado estudioso? Não há prazer maior e mais acessível do que ouvir uma boa canção, ler um bom livro… ou subir um morro. Não há nada melhor para a força criativa do que se alinhar com o nascer do sol, e para paz do que ouvir os pássaros. É preciso parar de ler noticias que não importam e viver com aquilo que nos foi dado pela Graça de Deus. Cultura e sofisticação são justamente isso, cultura, ou seja oposição àquilo que é natural, e sofisticação é nada além de sofisma, algo feito para enganar os raciocínios. Qual a saída? Em algum lugar as areias da ampulheta se escoam e indicam que o fim está mais próximo. Qual a saída? Cito Beckett:
Do útero para o túmulo e um parto difícil. Lá do fundo da terra, o coveiro ajuda, lento, com o fórceps. Dá o tempo justo de envelhecer. O ar fica repleto dos nossos gritos. Mas o hábito é uma grande surdina. Para mim também, alguém olha, dizendo: ele dorme, não sabe direito, está dormindo. Não posso continuar.
Esperando Godot (Beckett, Samuel)
Mas ainda há esperança. Como a alegria de saber que a filha de seu amigo se safou… ainda que a esposa não. Ele, que foi diagnosticado com HIV recentemente, e que só me foi dado saber agora. Parece que tem a doença desde que nos conhecemos. Essas coisas marcam a vida. E me fazem pensar… que faço eu pelos meus amigos? Que tipo de amigo eu sou? Por que os abandonei tão rápido? Eu pensei bastante antes de ir lá visitar ele; não porque não quisesse, mas para que me coração soubesse exatamente o que levaria de presente. O resultado foi bom. Conversamos durante horas e saí muito impressionado com a sabedoria do meu velho amigo (que de velho não tem nada, apenas 28 anos).
Conversamos sobre a galera das antigas, as mudanças na vida e as novas lições; ele me disse que a única coisa que lhe fazia sofrer era ver os outros indo pelo mesmo caminho que ele. Ele, um pai de primeira viagem, demonstra muita alegria pela filha. A sua lição maior está em aceitar as causas e consequências dos seus atos.
Nos conhecemos desde 2006, quando eu fiz minhas incursões pelo bairro próximo para fazer amigos na minha nova vida em Cuiabá e Várzea Grande. Muita confusão naquele bairro, agora me lembro. Não acredito nem que sou capaz de voltar lá hoje em dia — foi lá que joguei basquete um tempo antes de parar de vez. Foi também onde fiz amizades do basquete e do rock muito boas e que duram até hoje.
Lá eu também sofri dois episódios de violência que nunca fui capaz de esquecer. Hoje vejo que foi por pura imprudência, como todas as coisas ruins que me aconteceram; numa roubaram minha bicicleta e me atacaram, completamente sem motivo, em gangue, me fazendo correr por várias ruas. No susto eu literalmente caguei nas calças. Outro episódio foi onde eu cuidava da Lan house da minha tia. Tinham vídeo-games e computadores e eu mesmo estava usando um; entraram dois assaltantes armados pedindo dinheiro e depois me deram uma coronhada na nuca, apesar de estar de costas para eles e obedecendo. Acho que sangrou — ou eu senti como se estivesse. Sentei na porta sentindo um vazio infinito dentro de mim e uma tristeza que eu nunca senti antes.
Foi lá que voltei a fumar e tentei parar de fumar pela primeira vez. E foi lá onde eu comecei a trabalhar, na época, no mercado Comper da Couto Magalhães, pouco antes de ser fechado de vez. Não fui demitido, e não fui eu que fechei o mercado, apesar de ir trabalhar bem chapado às vezes. Esta é a época que antecede o Herbert e o Cophamil, é uma época antes da minha primeira faculdade. Morava com minha tia e tinha que prestar contas a ela. Não muito tempo depois eu sairia de lá, mas voltando muitas vezes ao longo dos anos. Ela me ajudou muito e nem sempre com lições fáceis.
Eu gostaria de viver uma vida autêntica, e tem sido isso que eu tenho tentado a minha vida toda, mas acho que eu sequer reconheceria algo autêntico ainda que eu desse com a testa nele. Minha vida é uma sequência interrupta de falsificações e segredos sujos. Também, eu pressinto que sempre tenho magoado as pessoas. Não em palavras, que nunca foram minha marca registrada, mas em atos. Ainda que ás vezes eu acerte; foi um ato impulsivo que me fez pegar a que seria minha futura esposa pela mão e atravessar a avenida; foi um ato impulsivo que me fez abandonar tudo tantas vezes para ir viver uma aventura. Se meditar me ensinou alguma coisa nestes anos todo é que nunca precisamos ceder aos nossos primeiros impulsos.
Mas, eu sei, as pessoas nem sempre estarão aqui segurando as pontas. Responsabilidade é saber quando chegou a sua hora de segurar as pontas para os outros. Esta lição é mais uma que encontrar meu amigo recém pai, soro positivo e cheio de canções na cabeça me ensinou: é preciso se levantar e recomeçar, não importa quão duro tenha sido o golpe. Apesar de tudo que havia lhe acontecido ele tinha planos e sonhos e um brilho no olhar que eu nunca hei de esquecer.