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Emperrado nas portas da percepção

o o que pode dar errado com uso inadvertido de drogas psicodélicas

CAPA

Mas o homem que torna a entrar pela “porta na muralha” nunca será exatamente igual àquele que por ela saiu. Será mais sábio, mas menos presunçoso; mais feliz, mas menos autocomplacente; mais humilde no reconhecimento de sua ignorância, mas também mais bem equipado para compreender a relação entre as palavras e as coisas, entre o raciocínio sistemático e o Mistério insondável que, sempre em vão, ele tenta compreender. Huxley, Aldous. As portas da percepção (pp. 55–56). Biblioteca Azul. Edição do Kindle.

O estado de nova iorque recentemente liberou cannabis para uso recreativo — e a notícia foi de que uma ong estava dando de brinde um cigarro para quem se vacinasse. Sem entrar em detalhes sobre a liberação da maconha e os prospectos econômicos que sua venda pode trazer — e em como um país essencialmente agrário como o nosso poderia se beneficiar com isso, gostaria de discutir os aspectos longitudinais da questão das “drogas” psicodélicas.

Assisti ontem o filme “Druk” do Vinterberg, e nele, acontece uma inusitada abordagem ao consumo de bebida alcoólica. Eles usam da premissa de um filósofo norueguês para dissertar e teorizar sobre o consumo próprio. Isto é, eles vão encher a cara com propósito. E eles até mesmo escrevem sobre isso, à medida que o experimento avança. Eu também fiz algo parecido quando quis conhecer a aplicação prática de uma nova onda psicodélica chamada “microdosagem”. Comecei me informando com artigos, podcasts e vídeos, e acabei eu mesmo fazendo o experimento, se tornando cobaia de mim mesmo.

Algumas publicações recentes dão o tom das descobertas científicas nesse sentido. Uma delas é o livro Como mudar sua mente, do Michael Pollan, lançado em 2018. Nele, o autor discute as mais recentes descobertas e mudanças de paradigma na área do uso terapêutico de psicodélicos. Inclusive com uma perspectiva pessoal do autor, que me lembrou de outro autor que admiro muito e que teve suas próprias experiências relatadas: Oliver sacks. Claro, não posso deixar de mencionar o livro As portas da percepção do Aldous Huxley, outra grande inspiração.

Indo direto ao ponto sobre experimentar uma coisa desconhecida em si mesmo: não recomendo. Ainda assim é, na minha opinião, natural e faz parte de uma cultura de autoconhecimento que nasceu de uma perspectiva niilista em parte e que sempre se pergunta — o que tenho a perder além da ignorância? Basta visitar alguns foruns da internet para ver que existe um movimento real de pessoas trocando experiências e informações acerca de assuntos muitas vezes inacreditáveis. Quantos destes relatos são factuais, é outra questão. Em ciência, no entanto, não se faz nada ao acaso, existem grupos de controle, e existem placebos; ainda assim, algumas das maiores descobertas da história são completamente filhas do acaso. A penicilina, a tabela periódica e o próprio LSD são bons exemplos.

De certa forma, ser capaz de experimentar algo em si mesmo é um conhecido recurso da dramaturgia para criar vilões, como os cientistas malucos. Na vida real, é uma das melhores formas de conhecer a verdade de algo — e não apenas no plano místico, mas também no físico. Um dos movimentos atuais conhecidos por esse tipo de pensamento são os Neurohackers, uma dissidencia do movimento de Lifehacking (ou quantified self). Basicamente, esse grupos acreditam que é possível, através de uma medição cuidadosa das próprias funções vitais, criar condições de melhoria na própria vida. Hacking, nesse caso, seria a capacidade de “criar atalhos”, ou “quebrar as regras” na própria natureza, seja mental, seja física. Segundo Wexler em artigo para o MIT (Tradução do deepl):

De fato, os dois movimentos compartilham muitas semelhanças: como os usuários domésticos de estimulação cerebral, aqueles que se identificam com o faça você mesmo na biologia estão interessados em democratizar as ferramentas da ciência, e utilizam um fórum online (um grupo Google) como seu principal nexo de interação. (…). Membros de ambos os movimentos encarnam o que ficou conhecido como a cultura do criador, que valoriza muito o conserto, a engenharia e a criação a partir do zero.

Wexler A (2017) The Social Context of “Do-It-Yourself” Brain Stimulation: Neurohackers, Biohackers, and Lifehackers

Uma das premissas deste tipo de pensamento, é que pequenas mudanças fazem grande diferença. Assim como hábitos são um meio de tranformação do indivíduo, o adepto do lifehacking acredita que uma pequena mudança de sua biologia pode criar uma grande vantagem pessoal. Mais uma vez, essa coisa do supersoldado vêm a tona: porque mudar aquilo que é perfeito? Por que ir contra as leis da natureza? Sem respostas, apenas me ocorre que não somos nós quem ditamos as regras, e que tampouco sabemos tudo sobre o que a natureza de fato é.

Assim, muitas das formas de alterar a consciência, hoje, são oriundas de práticas ancestrais. O tabaco é uma delas, assim como o ayahuasca e uso ritual de cogumelos. Quando uma pessoa média, no início do século vinte e um, com problemas de ansiedade e depressão, procura meios de se tratar, tem vasta opção, e, definitivamente, precisará usar psicodelicos em poucos casos — e é nisso que me interessa a mudança de paradigma. As notícias vindo dos Estados Unidos e o Canadá, hoje, me interessam na mesma medida em que esses experimentos com psicodelicos avançam sobre séculos de ignorância e desprezo dos tratamentos ancestrais.

E porque um terapeuta pode ser tanto um profissional formado, como um amigo que ouve você de coração aberto, existe um vasto campo experimental no que concerne o cuidado e a terapia. E em tempos pandêmicos, pode ser apenas você mesmo seu terapeuta, em uma prática radical de autocuidado com usos de drogas. Pelo menos era o que eu pensava.

Hoje com apenas cinquenta reais você pode participar de uma sessão de ayahusca, e encontrar com uma verdade que certamente faltarão palavras para descrever (quanto mais para recomendar ou fazer vídeo de react). Com sessenta reais você compra cinco gramas em microdoses de psylocibe cubensis no mercado livre; se elas funcionarão como terapia ou não, é um assunto discutível, e é nessa terra desconhecida que muitos cientistas hoje estão pesquisando. E é recomendável esperar, e mais recomendável ainda, ter acompanhamento de profissionais da saúde em todas as fases do processo, até que os cientistas digam que é seguro se tratar com psicodélicos. Para quem está desperado, deprimido e ansioso, no entanto, esperar é aumentar exponencialmente o sofrimento.

Dito isso, proclamo que quem puder evitar, evite. Que mantenha a curiosidade em clara circunspecção: assim como um tratamento experimental pode acabar com os sintomas a curto prazo, pode fazê-lo de maneira que não seja de forma alguma prazerosa — criando uma situação em que o tratamento dói mais do que a doença, por exemplo.

Em uma pandemia, no entanto, é possível que haja quem pense que tudo vale — e em um país que a enfrentou tão inabilmente, mais ainda. Infelizmente preciso dizer que esse desespero apenas reforça a necessidade de precaução. Mesmo com muita leitura e estudos, e acompanhamento de uma pessoa de confiança, tais experimentos podem dar errado e colocar a pessoa em uma situação de quase morte, ou experiência de morte do ego.

E quando a pandemia finalmente passar e as pessoas puderem celebrar a vida uns com os outros, faltará uma peça essencial para aquele sujeito fruir desta mesma alegria. Afinal, vivemos em uma realidade compartilhada, e se for apenas por causa da pandemia que se busca alívio e fuga, é recomendável repensar a decisão.

  • https://oglobo.globo.com/sociedade/maconha-distribuida-gratuitamente-para-quem-ja-se-vacinou-contra-covid-19-em-nova-york-24980416
  • https://www.omelete.com.br/filmes/criticas/druk-mais-uma-rodada-e-o-tipo-de-filme-que-acontece-quando-os-problemas-acabam
  • https://open.spotify.com/episode/1ICSexGz1pF7qrHSPnD1hD
  • https://www.vox.com/2015/8/31/9232891/psychedelic-drugs-oliver-sacks
  • https://www.preparaenem.com/quimica/mendeleiev.htm
  • https://www.preparaenem.com/quimica/mendeleiev.htm
  • https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fnhum.2017.00224/full
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