Depois da Iluminação, lave a roupa suja. Antigo ditado budista.
“Legal”, eu disse. Era contra meus princípios e tal, mas eu estava me sentindo tão deprimido que nem pensei. Está aí o problema. Quando você está se sentindo deprimido não consegue nem pensar.
“Legal o quê? Uminha, ou até o meio-dia? Eu tenho que saber.”
“Só uminha”.
“Certo, em que quarto cê tá?”
Eu olhei para a coisinha vermelha que tinha o meu numero, presa na chave. “Mil duzentos e vinte e dois” eu disse. Já estava meio arrependido de ter deixado a coisa começar, mas já era tarde demais.
Salinger, J. D. O Apanhador no Campo de Centeio. 2019, Ed. Todavia, p. 112
Esse mês faz sete anos que tentei, pela última vez, abandonar a minha vida e recomeçar do zero. De certa forma, esse mês completam sete anos que construí uma vida nova para mim, também; as únicas revoluções que não se tornam regimes opressivos no dia seguinte, afinal, são aquelas que falham.
Julho de 2013 foi o mês em que estive no Rio de Janeiro para participar de uma série de cursos de meditação em um retiro que acontece nas serras. O meu primeiro mês ia ser de serviço que só pessoas que já fizeram cursos lá antes poderiam fazer. Sim, era um mês inteiro afastado do mundo exterior, e depois mais dez dias participando do retiro como meditador. No total, passei lá cerca de dois meses, e só fui embora após lembrar que precisava retomar minha vida como a deixara: faculdade, relacionamentos e família.
Eu sempre desconfiei de pessoas que tentavam abandonar tudo vez ou outra, da mesma forma que sempre desconfiei mais ainda de quem nascia e vivia sempre no mesmo lugar, e nunca encontrei casos assim na vida real, todo mundo vivendo em algum ponto dos dois extremos — mas eu sim, de vez em quando sentia com muita força o impulso de abandonar tudo.
Essa, porém, não é uma pegadinha e eu não sou o narrador não confiável de uma história estranha: eu apenas me sentia desajustado e tinha problemas com drogas. Entrar em um retiro de meditação (que eu já conhecera dois anos atrás, de maneira que não foi exatamente um choque) onde se pratica o nobre silêncio, sem internet e refeições depois das 17, ininterruptamente, por mais de um mês, foi naquele momento o empurrão que eu precisava para começar a ver as coisas com mais proximidade de sua verdadeira realidade, e que fez toda a diferença na minha vida naquele momento.
Hoje eu não acho que essa seja a melhor abordagem para enfrentar aquelas questões, até mesmo porque a meditação não faz milagres — ao menos não a olhos nus, e sua performance depende da aplicação e da duração desta aplicação mais do que de qualquer outra coisa, o que levou autores como Kornfield a defenderem a evolução espiritual através de ciclos — porque seja você um mestre ioguin com várias estadias na Índia ou um estudante latino americano sem dinheiro no banco, sempre terá de passar muitas vezes pelo mesmo estágio e recomeçar muitas vezes a mesma prática. Drogas, mais especificamente, é uma questão de política e saúde pública, e envolve tanto a consciência de quem usa como o ambiente que o rodeia. Quando a droga em questão é uso recreativo de cannabis, o ambiente e as companhias influenciam mais ainda.
Esse mês é mais representativo ainda porque foi o mês dos protestos dos 20 centavos que acabaram sendo inflados a ponto de se tornarem outra coisa muito diferente e da qual não tive nenhuma única participação — quando o retiro acabou também haviam acabado os protestos. O mundo que eu voltei não era muito diferente do que o que eu havia deixado, institucionalmente falando. Eu, por outro lado, jamais voltaria a ser o mesmo. Trazia comigo não apenas a esperança de dignidade, mas também a confiança de haver encontrado um caminho e irmãos neste mesmo caminho. E também o conhecimento de quão fundo vai esta colossal e admirável bagunça que eu sou.
As vítimas preferenciais, os velhos, são, entre os indígenas, povos de tradição oral, os guardiães da memória ancestral, dos mitos, das histórias, das canções e, em diversos lugares, também da língua nativa. Essas mortes equivalem a incêndios em nossas bibliotecas, com a diferença de que os livros não poderão ser repostos e, com isso, a transmissão da memória aos jovens é interrompida.
Vilaça, Aparecida. Morte na floresta (Coleção 2020) (p. 7). Todavia. Edição do Kindle.
Semana passada houve uma live promovida pelo grupo de pesquisa que eu integro, o LabTecc, e que tive a sorte de mediar. O assunto era muito sério, talvez mais do que se possa expressar em palavras, a saber: o enfrentamento do covid (sar cov 19) nos territórios indígenas no Mato Grosso, e tinham como convidados um pedagogo e um psicólogo de origem indígena assim como um professor de Barra do Bugres envolvido com a causa. Como era esperado, o inesperado aconteceu e não tivemos contato com um dos convidados a tempo de começar a transmissão e o professor improvisou ali na hora, trazendo uma representante da mesma nação (Xavante) à mesa e que trabalha com a Funai. Isso foi representativo porque só havia homens naquela mesa até então; para maior felicidade o convidado atrasado apareceu e a conversa, agora com quatro convidados, começou a fruir. Você pode ver a transmissão na íntegra na página do grupo no facebook. Foi a primeira vez que eu participei de algo do tipo, tanto pelo papel de mediação como o da transmissão ao vivo pela internet.
No vídeo você pode observar que não soo muito natural, o que é natural dadas as condições que vivemos no momento que é não conversar muito ao longo dos dias; mesmo vivendo com minha esposa lado a lado, muitas vezes passamos dias sem entravar uma conversa mais longa, e acho que é um sinal mais de harmonia do que de descaso — quando dois estudantes de filosofia começam a conversar no mínimo é para durar muitos meses. A Pandemia e a singularidade tecnológica colocaram a muitos (a mim incluso) em um terreno pouco receptivo de conversas de texto, vídeo e áudio e nenhum feromônio. E se existe um novo normal no futuro é provável que seja esse. Uma péssima notícia para uma raça que adora contato e proximidade como a nossa. Isso tudo ou… talvez eu não tenha muitas habilidades sociais.