Hum Blog Qualquer

Kátharsis

I’ll be around, you were right about the stars / Each one is a setting sun. Jesus, etc. Wilco.

Precisamos de histórias individuais. Sem os indivíduos, vemos apenas números: mil mortos, cem mil mortos, “as baixas podem chegar a um milhão”. Com histórias individuais, as estatísticas se transformam em pessoas — mas até isso é uma mentira, pois as pessoas continuam a sofrer em quantidades que também entorpecem e carecem de sentido.

Deuses americanos (American Gods) (Gaiman, Neil). Ed. Intrínseca, 2016.

Esta noite, a despeito das bebidas de ontem, dormi por nove horas seguidas. Desta nove horas, segundo o aplicativo que lê os dados coletados pela pulseira eletrônica, cinco foram em sono profundo, o sono dos sonhos, da aprendizagem. Dias assim são raros, ainda que cada vez menos. Eu me sinto bem com seis horas de sono, mas estabeleci a meta, este ano, de dormir pelo menos sete horas por noite. Eu sempre me senti em conflito com muitas horas fora de atividade até perceber o bem que noites bem dormidas fazem para a criatividade, meditação e saúde.

Noite passada, sábado, estávamos comemorando meu aniversário, que fora na sexta; comemoramos na sexta também, mas quando há vontade todo mundo consegue comemorar mais de uma vez. Sexta vimos o Coringa de Joaquin Phoenix e sábado comemos na casa do Zimovsky. Não planejo fazer observações acerca do filme, dada a pouca distância que há entre o evento de assistir e escrever aqui, mas gostaria de apontar que Parasite, também deste ano, do diretor sul-coreano Bong Joon-ho, é ainda o melhor filme que eu já vi este ano (e não, ainda não vi Bacurau, mas vou ver).

Sim. Fiz 35 anos. Uma porção de tempo para estar vivo, e só agora posso dizer que começo a entender alguma coisa. E essa alguma coisa é tão pouca mas ainda suficiente para fazer desmoronar outras tantas coisas que eu acreditava sólidas. Quanto ao peso da idade, as pessoas me disseram para desencanar da idade. Para não se sentir velho, até para regatear, mentir a idade se necessário, ter 35 só a partir do ano que vem. Isso faz perder todo o propósito da comemoração, e portanto discordo e abraço minha própria idade.

A ficção permite que nos esgueiremos para dentro dessas outras cabeças, desses outros lugares, e olhemos por outros olhos. E então, na história, paramos antes de morrer, ou morremos ilesos na pele de terceiros, e no mundo além da história viramos a página ou fechamos o livro e continuamos com nossa vida.

Deuses americanos (American Gods) (Gaiman, Neil). Ed. Intrínseca, 2016.

É compreensível que a juventude seja apresentada como uma mercadoria, afinal hoje quase tudo é. Juventude em geral traz a ideia de renovação, de criatividade, de elasticidade, de beleza e de companheirismo. A juventude é geralmente estimada por todos, exceto pelos jovens em si. Eu mesmo sempre quis ser adulto, desde menino. A capacidade de ir e vir, de não ter que dar muitas explicações e (vai saber porque) de usar sapatos grandes de couro era o principal motivo. Claro que muitas coisas se provaram falsas (principalmente a atração por sapatos de couro), mas no geral, amadurecer e se tornar adulto permaneceu um ideal até hoje.

Amadurecer, no entanto, é uma tarefa difícil. Exige que se saia de caminhos comuns, que se assuma responsabilidades, mas que também se aprenda a delegar tarefas que não é capaz de cumprir e que se tenha responsabilidade consigo mesmo. E por mais que se faça isso tudo, esse amadurecimento raramente se faz completo; e talvez seja para ser assim mesmo, pois como disse Nietzsche, tudo aquilo que se encontra completo, maduro, quer morrer.

Eros e tanatos, já dizia Freud. Também: Pulsão de vida e pulsão de morte. De certa forma nossas sociedade inteira está nessa pulsão de morte ultimamente, e quando estou com meus amigos (muitos deles com vinte anos) ou com minha esposa e a família dela (com mais de 40), sinto que isso já aconteceu — o mundo já acabou e só temos uns aos outros para contar. Independente de ideologia, cor, raça ou credo; reconstruimos o mundo a cada dia a partir de nossa tolerância.

Cho Yeo-jeong

É impossível parar o tempo. E nem uma montanha de ouro, como diz o provérbio chinês, pode nos dar um ano a mais de vida. Talvez seja isso que estivessem tentando me dizer quando me disseram para não esquentar com coisa de idade. Não importa quanto sucesso alguém alcance, essa pessoa ainda vai ter o mesmo destino que todos; não é quão longamente se vive, mas quão amplamente se vive; porque será então que aceitamos a opressão de um sistema tão injusto onde indivíduos podem possuir recursos maiores que nações inteiras — indivíduos que possuem tanto dinheiro que nem mais conseguem calcular? Um sistema onde a única salvação possível para os mais pobres é uma carta de promessa que doação de bilionários? Bilionários são só um exemplo, ainda que o mais tangente, da loucura que o sistema capitalista é capaz de criar.

Cada um de nós ocupa uma posição única no universo e na intrincada rede de relações e afetos possíveis; ainda assim somos presas fáceis de modelos estatísticos que conseguem “prever” quais nossas próximas escolhas e desejos. Nós demos a eles todas as informações que precisam, e isso não parece ser um modelo reversível. Algumas pessoas até acham que o celular as ouve, tamanho o acerto de previsão destes modelos; mas nada disso precisa ser um pesadelo se soubermos usar estas ferramentas ao nosso favor. E lembrar de deixar o celular um pouco de lado também ajuda.

Em tempos sombrios como o que vivemos, sentir raiva ou tristeza já não é suficiente. É preciso apreciar ativamente os enormes esforços dos nossos artistas, entre outros, para nos mostrar que outra realidade é possível. E nisso interpretações primorosas como a de Joaquin Phoenix ou Cho Yeo-jeong são como que oasis no deserto. A ficção tem a poderosa capacidade de nos transportar para outras épocas e lugares, e nos fazer sentir aquilo que de outra forma não nos daríamos o trabalho de sentir. De superar os modelos estatísticos e ao mesmo tempo a inércia do solipsismo.

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