No silêncio envolvente do retiro, encontrei um espaço inesperado onde a meditação e a literatura se entrelaçam, cada uma iluminando caminhos distintos para a compreensão da condição humana. Enquanto a prática de satipaṭṭhāna me conduzia por uma jornada de consciência plena e observação imparcial, as palavras de Tove Ditlevsen, Ilaria Gaspari, David Foster Wallace, Samanta Schweblin e outros criavam um panorama repleto de emoção e introspecção.
A luz dos postes acaba de se acender, e de quando em quando a lua espia entre as nuvens apressadas, fugidias. Sempre achei que entre a lua e a rua existe um entendimento misterioso semelhante ao de duas irmãs que envelheceram juntas e já não precisam de nenhum tipo de linguagem para se comunicarem uma com a outra. Ditlevsen, Tove
A ênfase de Analayo na aplicação da consciência dos fenômenos como eles são, e como ocorrem, ressoa profundamente com a o desenvolvimento em curso da minha percepção sobre a aceitação da realidade. A integração das quatro satipaṭṭhānas em uma única prática meditativa parece ecoar meu próprio reconhecimento da interconexão entre corpo, mente e sensações, uma harmonia que eu acredito ter experimentado algumas vezes durante o retiro.
Ainda sobre a integração dos quatro satipaṭṭhāna em uma prática, vários ensinamentos sugerem isso pode levar à realização espiritual completa. Da mesma forma, os comentários sobre esses ensinamentos afirmam que cada tipo de meditação satipaṭṭhāna tem o potencial de conduzir ao despertar total. Isso pode explicar por que muitos professores de meditação de hoje em dia se concentram em usar apenas uma técnica de meditação, entre eles o nosso SN Goenka, ao dizer que, observando as sensações do corpo, que estão ligadas aos sentimentos e à mente, pode-se praticar todos os quatro tipos de satipaṭṭhāna e alcançar a iluminação.
Eu tive a oportunidade de passar alguns dias sem celular e descobri que posso ler em alguns dias aquilo que ele me impediu de ler o ano inteiro. Seguem algumas notas de leitura destes dias. |
Ainda nas leituras calndestinas, Ditlevsen, com sua prosa poética e reflexões agudas sobre a condição humana, parece ter oferecido um contraponto emocional à minha jornada introspectiva. A descrição da infância da autora evoca uma sensibilidade que se alinha com minha apreciação do silêncio e da capacidade de estar sozinho com os pensamentos.
A crueldade e realismo de certas partes da semi-biografia destacam como sofrimento e desconforto podem ser motores de crescimento pessoal. Além disso, a maneira como Ditlevsen retrata os adultos — que se mantêm julgando os outros sem analisarem a si mesmos antes — ressoa com minha própria história quando, aos dezoito anos, descobri que meus pais haviam mentido sobre minha origem. Essa revelação me levou a questionar constantemente a natureza da verdade. A mentira que me contaram, e que por tanto tempo acreditei, me faz refletir: teria sido tão convincente simplesmente porque correspondia ao que eu desejava acreditar?
Momentos de claridade como esse eram a verdadeira carne destes dias, em que meditava e lia, lia e meditava. A prática de estar presente e consciente se manifesta como um fio condutor que perpassa as experiências e reflexões. Um outro exemplo de insight foi sobre a verdade e a não predisposição natural do ser humano para buscá-la. Essa compreensão realça o papel da meditação como uma ferramenta vital nessa busca. Paralelamente, as palavras de Ditlevsen, com sua habilidade narrativa, capturam a essência da experiência humana e nos lembra que "de vez em quando é preciso mentir para dizer a verdade", por mais paradoxal que isso possa parecer.
Nessa interseção entre a meditação e a literatura ilumino minha compreensão de que, na vida, tanto a clareza da percepção quanto a riqueza da expressão são essenciais para alcançar uma compreensão mais profunda de nós mesmos e do mundo ao nosso redor. Cada um, à sua maneira, atua como uma lanterna, iluminando os caminhos tortuosos da existência humana e guiando-nos em nossa busca incessante por significado e autenticidade.
Nesse terceiro dia de retiro, percebo uma apreciação crescente pela natureza das coisas: a impermanência, a interconexão e a constante evolução. É na riqueza desta variedade de experiências e reflexões que busco a essência do meu ser e da minha jornada contínua rumo ao autoconhecimento e à compreensão mais profunda das coisas como elas são.