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Minhas 10 melhores leituras de 2020 Parte I

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Uma Garota lê no riacho — John Singer Sargent (1856–1925) Girl reading by a stream oil — on canvas

Minhas 10 melhores leituras de 2020 - Parte I de II

Introdução

O valor de um livro, já dizia o jovem Piglia por volta de 1957, está em sua capacidade de marcar o momento em que é lido de tal maneira que lembremos, ao longo de toda a vida, o momento em que o tínhamos à mão. Neste sentido, os livros aqui apresentados são livros que eu li e reli muitas vezes, a primeira quando o abri pela primeira vez, as outras revisitando aquela primeira vez para rever um amigo, experimentar uma lição ou para escrever estas resenhas.

Em um ano como este que acaba em um par de semanas, os livros carregaram uma carga de significado muito maior do que o esperado — muitos comemoraram os aumentos das vendas no mundo todo e lamentaram as intenções do governo de sobretaxa-los. No entanto, seja lendo ou fazendo qualquer outra atividade, somos uma espécie programada para se preocupar e foi isso que fizemos, muitas vezes nos sentindo culpados ou escapistas enquanto buscávamos entretenimento; certamente todas as expectativas de leitura foram pouco precisas, eu que o diga, com leituras concorrentes de artigos para a pós graduação, sessões de videogame e maratonas de séries — de tal maneira que posso afirmar com certeza que li, de capa a capa e com algum rigor (não muito, pois fiquei preocupado que não iria acabar alguns livros a tempo do fim do ano e apelei para leitura dinâmica) apenas umas dezenas de livros — talvez não mais do que três.

Dito isso, não imaginei qual seria o perrengue de escolher dez livros para compor minha lista de fim de ano — até eu começar. Isto porque cada livro, como já foi mencionado, foi lido mais de uma vez, e esteve comigo ao longo de muitos dias, e provavelmente estarão ainda no futuro. Como alguém que defende tanto o valor da literatura, devo admitir, eu leio bem menos do que deveria, mas isto também é uma percepção que pode estar adulterada pela modorra dos dias confinados, e gosto de pensar que primeiro aprendi a ler com profundidade como faria um escritor para, em um momento mais oportuno, passar a ler com mais velocidade. Ou não. Como diria um personagem de Respiração artificial, sou um homem completamente feito de citações, e pode ser bem difícil saber quando se está lendo por prazer e por obrigação — principalmente a obrigação de compartilhar o prazer de ler. Mas uma coisa eu garanto: nenhum destes livros selecionados (cinco agora e cinco na próxima semana) foi lido por obrigação. São, ademais, obras de ficção contemporânea apenas, deixando de lado os artigos, os livros de não ficção e as descobertas do mestrado. Os leitores mais atentos, no entanto, vão notar que no fim das contas as referências estão todas conectadas.


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Esboço — Rachel Cusk

Às vezes já me pareceu que a vida é uma série de punições para tais momentos de desatenção, que uma pessoa molda o próprio destino com aquilo em que não repara ou pelo que não sente compaixão; que aquilo que você não sabe e não se esforça para entender vai se tornar exatamente a coisa que você será forçado a conhecer. Cusk, Rachel. Esboço . Todavia. Edição do Kindle.

Em 2020 vimos a normalidade implodir ao mesmo tempo em que os meios de comunicação do mundo todo acusavam o crescimento da epidemia do vírus em pandemia global. Quem tinha planos cancelou, quem ia às aulas parou de ir, quem saia de casa todo dia para trabalhar, com exceção dos trabalhadores essenciais, ficou em casa. O primeiro momento do distanciamento social pareceu um natal adiantado — um momento para ficar com a família, para contemplar a vida e colocar em dia as séries, filmes e livros que porventura houvessem para ser lidos.

Claro, isso foi só o começo e desde então, uma data que está entre final de março e início de abril para a maioria, os mesmos motivos que haviam para se manter isolado — o pouco conhecimento da doença, o risco de transmissão, a falta de tratamento e a preocupação com os aqueles que estão em grupos de risco — senão aumentaram então ao menos se mantiveram altos. O ano que vem não promete nenhuma melhoria senão uma piora nas consequências que ela produziu: o hiato educacional, o desemprego e o aumento do preço da comida; junto disso o aumento da temperatura global e desmatamento que só pioram ano a ano. O distanciamento, para quem procurou cumprir, agora não se parece em nada com um feriado ou um ano sabático.

Sabemos disso na mesma hora em que vemos um filme e os protagonistas não estão de máscara ou evitando se tocar — rindo e se beijando, a mocinha e o mocinho não sabem o risco que correm e sentimos, ainda que por uma fração de segundo, o impulso de avisá-los. O vírus criou um simulacro de realidade onde, dentro de nossas casas, usando de ferramentas que talvez fossem supérfluas noutra situação mas que agora se tornaram essenciais, tentamos manter alguma normalidade, com algumas relações e com alguma produtividade. Supõe-se que a economia dos escritórios fechados foi tão grande que talvez haja implementação do trabalho remoto no futuro; fato é que do jeito que as coisas aconteceram, salvo algumas exceções, o que aconteceu não foi trabalho remoto (podcast Mupoca #115 para quem quer aprofundar no assunto).

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Um dos muitos esboços de Leonardo da Vinci: The head of Leda c.1505–8

Ainda assim, estas são as melhores condições disponíveis no momento, e criam, à sua maneira, que é a maneira brasileira de fazer tudo, uma cisão social, onde uma camada da população minúscula em comparação à população empregada, pode se dar ao luxo de não sair de casa e se arriscar a pegar a doença. Essa discussão não está em pauta ainda porque, ao que parece, é preciso primeiro que haja emprego antes de se preocupar com seu ajustamento ao trabalho remoto. Nos países mais ricos, como era de se esperar, não apenas a grande parte do trabalho pode ser feito de casa como ainda são os primeiros a terem vacina. À parte disso, todos temos que viver com nós mesmos e nossas próprias questões.

“As partes sufocantes da vida”, disse Angeliki, “são muitas vezes aquelas que são a projeção dos desejos de nossos pais”. Cusk, Rachel. Esboço . Todavia. Edição do Kindle.

E essas questões não são triviais, como se pode notar já nas primeiras linhas de Esboço, o primeiro livro da trilogia de autoficção da Rachel Cusk. Autora esta que aparece na capa do livro de Knausgard “A morte do pai” (melhor leitura de 2019) com um elogio. Ironicamente, Cusk foi publicada pela Todavia (que já publicou o livro dois da trilogia também, “Trânsito”), uma editora que me impressionou bastante por sua ousadia quando todo mundo parecia querer apenas publicar clássicos com novas roupagens (sim editora antofágica, estou falando de você).

Cusk é uma autora habilidosa e de profundidade — sua prosa contém diálogos e reflexões fartos de descobertas súbitas e revolucionárias — todas escritas com precisão cirúrgica em linguagem despojada. É um livro também sobre uma mãe solteira recomeçando a vida após um divórcio e que viaja à Atenas, Grécia para dar um curso de escrita criativa. Ainda assim não é um livro de militância feminista, mas um relato direto dos dias de um ser humano sobre a terra, vivendo e descobrindo enquanto conversa com outros seres humanos. A arte do encontro, aqui, é exibida com toda sua exuberância, inclusive do reencontro, como é o caso do amigo grego que ela faz já no voo para a Grécia — é um livro que me encheu de perplexidade pela sua forma, ao mesmo tempo que me revelava algo que eu já sabia desde pequeno, mas que nunca é demais relembrar — uma vez que a normalidade e a tessitura do cotidiano já haviam ido para o beleléu mesmo — mulheres são fortes, e são capazes de tudo o que se decidirem e quiserem fazer, em qualquer lugar e em qualquer época.

Em outras palavras, ele estava descrevendo aquilo que ela própria não era: em tudo que dizia sobre si, ela encontrava na sua própria natureza uma negativa correspondente. Essa antidescrição, na falta de um termo melhor, tinha, graças a uma espécie de exposição reversa, deixado algo claro para ela: enquanto ele falava, ela começara a se ver como uma forma, um esboço, com todos os detalhes preenchidos em volta enquanto a forma em si permanecia vazia. Cusk, Rachel. Esboço. Todavia

Esboço foi para mim uma das melhores descobertas do ano, e sua leitura me acompanhou no cerne dos acontecimentos globais que descrevi no começo desta resenha, afinal, muito já se foi discutido a respeito do mundo pós pandemia: se haverá maior conscientização das necessidades verdadeiras do planeta; se haverá distribuição de renda mais equitativa, se conseguiremos conter o aquecimento global agora que vimos que o mundo pode sim parar se assim desejarmos; à luz desta leitura de Cusk, no entanto, começo a vislumbrar não o esboço de um passado que se fazia presente quando eu lia o livro pensando no que havíamos perdido, mas um esboço de um futuro, pós pandemia, onde seremos mais presentes e atentos, onde conviveremos melhor com os outros e com nós mesmos, em uma atmosfera de verdadeira aceitação e luminosa entrega.


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Anos De Formação: Os Diários De Emilio Renzi — Ricardo Piglia

Primera conclusión: para leer, hay que aprender a estar quieto. Ricardo Piglia, Los diarios de Emilio Renzi: Años de formación

Bildungsroman, ou romance de formação, é um gênero literário que busca falar “sobre as primeiras lutas e a educação emocional de um protagonista jovem, que cresce e amadurece durante o processo”. (O Livro da Literatura, 2016. Globo editora). Este livro, embora seja autobiográfico como muitos romances de formação possivelmente são, não é exatamente um romance. São os diários do jovem Piglia, sob o alterego de Emilio Renzi, com entradas ao longo de meados os anos cinquenta a fins dos anos sessenta — e que termina na publicação de seu primeiro livro, Jaulario ou La Invasión (mesmos livros, mas o último é revisto e ampliado) em 1967.

Apesar do que possa parecer, não me interessei por Piglia na esteira de meus estudos autodidatas de cultura argentina em 2017 para a primeira viagem àquele país; muito embora, se eu houvesse descoberto ele a tempo teria aproveitado muito suas discussões sobre argentinidade e literatura argentina. Não, eu estava então procurando mais livros com prosas sinceras, honestas e que não perdiam, apesar disso, a poesia como as que eu li no primeiro livro do Knausgard, aquilo que foi embalado como autoficção por alguns comentaristas e que eu acabara de conhecer.

327 Cuadernos - sinopse na MUBI

Certamente o livro de Piglia é isso e muito mais. Como descobri depois, é uma imensa coleção de diários (327 cadernos, manuscritos desde 1957) que abrangem todas as suas descobertas literárias, artísticas, emocionais e intelectuais. É um livro com início e fim como um romance fictício (Emilio Renzi então é descrito em terceira pessoa) — e guarda até mesmo um mistério sobre o segredo de seu avô e que só é revelado depois de cerca de 350 páginas — de tal forma que é um livro que pode ser lido de mais de uma maneira. O capítulo final, onde sabemos mais sobre um Piglia envelhecido e com uma doença degenerativa (embora completamente lúcido), é de uma tocante realidade e valida toda a experiência — para mim é o esforço final de um autor consagrado, de certa forma o seu canto do cisne.

É um livro sobre livros, e é um retrato do que era ser jovem nos anos sessenta — todos os equívocos, todas as paixões e a obstinação tão duradoura de ser escritor, está tudo lá. Um leitor voraz e cuidadoso, Piglia rompeu com o pai porque este queria que ele fosse médico. Estudando História, sempre mirou no sonho de contar histórias, uma habilidade herdada da mãe, segundo ele. Se ao ler Knausgard eu pude viver na pele de um impossível escritor norueguês pai de duas meninas, ler Piglia foi ver em panorama toda a formação de um escritor em uma realidade muito mais palpável para mim, a de apenas mais um jovem latino americano sem dinheiro no banco. Mais ainda, foi ver como algumas de nossas tensões são as mesmas desde sempre — os governos corruptos e autoritários, a luta diária pelo significado e pelo pão, e, no caso do Piglia, o refinamento cada vez maior da habilidade de escrever. Esse livro é um achado para qualquer um que tenha a pretensão de um dia se tornar escritor.

Somado a tudo isso, o livro intercala cada época (cerca de dois anos) com um conto do autor escrito àquela época, o que aprofunda a dimensão fictícia da obra. Nas minhas anotações eu encontro de tudo um pouco — referências sobre minha própria vida quando ele fala de seu amigo que era também fora da lei — e muitas anotações sobre o que ele pensava de livros, arte e da vida. É de uma sabedoria essencial, básica e crua como aquelas que só os jovens de vinte anos podem ter:

“sempre existirá um hiato intransponível entre ver e dizer, entre vida e literatura”. P. 23

“tinha uma convicção absoluta, e o estilo não é nada mais do que a absoluta convicção de ter um estilo” p. II

Finalmente, dentro da tristeza dos dias frios e solitários que ele passava então, e que de alguma forma ressoou comigo, muitas vezes sem saber como ia se sustentar até o fim do mês, anotei isso:

(…) Claro que é impossível viver sem os outros, sem o corpo. E a solidão é uma ilusão falsa, como a magia, como Platão e o platonismo, como os místicos que desprezavam e repudiavam o corpo, não por um austero sacrifício, mas pelo imenso orgulho de poder superar as “limitações” físicas. A vida fora do mundo, o eremita no deserto, são saídas fechadas. Então? Entender que a gente é — se é que alguma coisa é — isso, a forma do rosto, a falta de jeito, a inquietação. P.233

É um livro sublime, e que ressoa com o melhor das publicações autobiográficas, sejam de diários, de autoficção ou de obras sobre literatura — e é uma história sobre a argentina dos anos sessenta e da descoberta, como Piglia estava descobrindo, do melhor que acontecia em arte e cultura daqueles dias. Seu primeiro encontro com Borges, sua amizade com Nestor Canclini, está tudo lá, e é tão delicioso como possa parecer.


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A Ilha da Infância — Karl Ove Knausgård

Sentido, falta de sentido, sentido, falta de sentido, eis a onda que atravessa nossa vida e instaura a tensão fundamental.

Knausgård, Karl Ove. A ilha da infância (Minha luta) (p. 11). Companhia das Letras. Edição do Kindle.

Comecei a ler o terceiro livro da série “minha luta” do escritor norueguês Karl Ove Knausgard em Junho, havendo acabado o livro dois, Um outro amor, há dois meses. O livro conta a infância do autor em uma ilha da Noruega nos anos setenta. Foi o livro menos filosófico e digressivo até agora; eu tinha altas expectativas por ele, no entanto. Mas na medida que outras leituras foram surgindo ao longo do ano e na medida em que tive as minhas expectativas resolvidas, fui deixando o livro de lado — o estilo de escrita do autor, episódico, pessoal, sem tramas que nos prendam, ensejando apenas a leitura pela leitura, facilitam isso. Deixei de lado por meses para acabar ele recentemente.

Este é um livro sensacional, no sentido literal da palavra, porque se refere muito às sensações e emoções do protagonista. O medo do escuro, a beleza da neve e o constrangimento de ver que seu pai não sabe esquiar. O primeiro amor, a primeira decepção. A comparação com os outros, a incompreensão e a injustiça. As brincadeiras estúpidas e hilárias, o vestiário da piscina. Enfim, a sensação de ser rei do universo que só uma criança conhece e vive, dividindo com outros meninos igualmente reis do universo o controle da ilha.

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Ainda assim sobram muitas discussões frutíferas sobre música, garotas, aparência e auto percepção. Aprendemos de onde veio seu amor pelos livros e seu amor pela música. A união tão próxima entre os irmãos que chega a ser comovente. Aqui se tem uma aproximação dos motivos pelo qual Knausgard tem medo do pai, e a origem da decepção que é escancarada no primeiro livro (se é justificável ou não, caberá ao leitor decidir). Como nos outros livros, aqui temos uma assimilação muito boa da existência do outro. Isso pois o autor desfruta de uma honestidade (straight-forward para usar um termo em inglês) que cria um ambiente seguro para identificação entre quem lê e quem escreve — as agruras ali descritas do menino e pré-adolescente Knausgard são muitas vezes as mesmas que as nossas — e amiúde inconfessáveis.

A ideia de que a infância é como uma ilha, que todos temos dentro de si, é aqui metáfora e realidade. Uma vez o Joel me disse que se lembrava de como era ser menino com grande precisão, e que quando isso começava a desaparecer da memória dele era como se ele próprio já não existisse. Recentemente, eu estive jogando o excelente Residente evil 2 remake eu tive a chance de jogar com a Sherry, uma menina que na versão original do jogo era apenas um personagem passageiro — o cuidado de inserirem ela como personagem jogável me despertou para o potencial engajador deste tipo de história; o terceiro e último jogo da trilogia Tomb Rider, Shadow of tomb rider também traz momentos em que somos a pequena Lara, decifrando quebra-cabeças na Mansão Croft e também encontrando os traumas que definiriam toda sua vida. Aos poucos, neste ano, entendi que essa alegoria — o grande que já foi pequeno, a infância que traz a potência de tudo que será o adulto, é mais atual do que nunca, e perpassa velhas e novas formas de contar histórias. Uma série de ficção científica que assisti esse ano e que resgata isso de forma igualmente delicada como fez Knausgard foi o Contos do Loop (link trailer legendado no YT). Que ela seja inspirada na arte de um artista sueco não me parece, à luz destas descobertas e da leitura de A ilha da infância, nenhuma coincidência.


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Enterre Seus Mortos — Ana Paula Maia

No início tentava não encarar os animais mortos, apenas os removia. (…) Observava diariamente a vida evoluir para a morte. Para ele, estar na presença de um cadáver o deixava um passo atrás da morte, como se ela não pudesse alcançá-lo, pois assim como o fluxo da vida segue sempre em frente, também o da morte avança. Maia, Ana Paula. Enterre seus mortos (p. 8). Companhia das Letras. Edição do Kindle.

Este foi um livro que li só porque estava na lista do curso “Lendo nosso tempo” e cuja descoberta me encheu de alegria — pois foi uma daquelas recomendações tão óbvias e certeiras que só poderiam ter sido feitas por quem entende do assunto —e que supriu o meu déficit enorme de literatura brasileira, pelo que sou grato. Embora seja um livro curto e seja (dizem aqueles que já a leram antes, mas que tenho ainda que verificar) o mais cinematográfico da autora, podendo ser lido em um fim de semana, certamente não é um livro leve e tampouco irrelevante.

Isso porque a autora, usando de uma simplicidade que só muitos anos de trabalho e dedicação poderiam trazer, nos coloca em um cenário fictício quase sobrenatural (embora quase e sobrenatural sejam termos que se excluem, pois o sobrenatural é também o quase: quase natural, quase não natural, uma espécie de interregno, de fronteira): uma empresa que coleta animais mortos das estradas em algum lugar do interior do país (pode ser qualquer país, alguns dizem Estados Unidos, outros interior de Minas gerais, eu arriscaria, não fossem os nomes e a linguagem utilizada, Europa Oriental) e que nos apresenta dois dos protagonistas mais incríveis que tive a sorte de encontrar nos últimos anos, Edgar Wilson e Tomás, o quase padre.

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Imagem de FreakyJP, Review — Outlast 2

Com uma intensidade incansável e duradoura, acompanhamos a rotina de catar animais mortos (muitas vezes com mortos humanos causados no encontro dos primeiros com estes últimos) e levar para triturador onde poderão ter nova utilidade. Rotina essa que aos poucos é engolfada em acontecimentos em parte casuais em parte provocadas pelo protagonista, culminando em uma sequência emocionante e fechando com imagem inesquecível, ao mesmo tempo profética e casual. O que mais gostei (não vou revelar detalhes do enredo) nessa primeira leitura (é um livro que enseja mais de uma) é a descrição que a autora faz de pessoas e lugares — gostei da atmosfera, tão bem descrita que me faz experimentar todo tipo de sensação relacionada à ideia de liberdade — e à figura masculina que experimenta essa liberdade — “homens grandões” (para usar uma descrição da própria Ana Paula em uma live recente) como Edgar que respondem apenas por si e que não carregam nenhuma espécie de laço — com exceção, talvez, com o próprio carro, que o leva pelas estradas, com café e cigarros, ao sabor do vento. Uma espécie de contemplação que surge daí, uma contemplação inerente àqueles que já não temem a morte — talvez por viverem muito próximos dela. Mas não se engane, não é uma leitura saborosa, e se tem um clima que está presente por toda a obra é a mesma que encontramos na arte do artista polonês Zdzisław Beksiński e em jogos de terror como Outlast 2.

Enterre seus mortos é um título derivado de uma passagem bíblica, mas que não fica somente nessa referência e o livro é cheio de observações acerca da religião do misticismo e do fanatismo. Diria mesmo que é essência deste cenário, embora possa estar enganado — os outros livros da autora vão narrar novas histórias neste mesmo cenário e com os mesmos protagonistas, o que denota uma profundidade maior e bem mais difícil de descrever do que simplesmente como “mundo do religioso sobrenatural”. Até mesmo porque o que vemos é mais do que mero sobrenatural, ou mera religião, mas uma perfeita descrição do que esse mesmo sobrenatural e essa religião são — e como influenciam o mundo ao seu redor. Um ponto alto da história é uma noite em que Edgar Wilson está na estrada e observa um grupo de religiosos mais radicais que prega às prostituas e travestis que ali estão: Por todos os lados o discurso é inflamável. De dia e de noite as chamas do inferno ardem em suas bocas. O desejo do coração é de vingança. Deus está vivo e quer matar. — Paz? — anuncia um dos fiéis ao ser interpelado. — Quem disse que a gente ia ter paz? Eu vim trazer a espada, eu vim trazer a divisão, eu vim jogar o filho contra o pai. Foi isso o que Jesus disse.

Maia, Ana Paula. Enterre seus mortos (pp. 15–16). Companhia das Letras. Edição do Kindle.

Esse comentário não é gratuito — Ana Paula se refere, ainda que indiretamente à violência inaudita contra a população homossexual — e que tem no Brasil um dos mais altos índices do planeta. Mais ainda, ela acusa a hipocrisia de um setor da sociedade que se julga salva enquanto vira a cara para não ver o lado que não aprova — um problema que pode ser rastreado até os primórdios da humanidade mas que, aqui, em um livro com um enredo que poderia muito ser apenas mais um filme de terror ou de suspense, com linguagem pop e ritmo empolgante, adquire tons de realismo impossíveis de ignorar. Jogando luz sobre uma religiosidade evangélica que cresceu muito no país nos últimos anos, este livro se situa com primor no centro das discussões político e sociais do país ao mesmo tempo que é uma delicia de entretenimento.


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Apátridas — Alejandro Chacoff

Eu passara a infância no país mais capitalista do mundo, mas a prosperidade americana que eu conhecera era estéril; irradiava apenas os apelos urgentes e efêmeros do consumo. Chacoff, Alejandro. Apátridas (pp. 16–17). Companhia das Letras. Edição do Kindle.

Ao contrário do que possa parecer para alguns, o distanciamento social e o isolamento causados pela Pandemia — bem como a adesão ao home office e ao distance learning que tive a incrível sorte de poder usufruir não me fizeram de maneira alguma ler mais livros. Não vou mentir, no entanto e dizer que me fizeram ler menos. No entanto, por volta de setembro eu achava que isso estivesse acontecendo e decidi ingressar em um curso online de estudos literários com duração de cinco semanas, com análises de dois livros por encontro via google meets.

A decisão, eu vejo agora, foi boa, mas talvez com um grande bad timing — porque ao fim do curso eu havia conseguido ler três dos dez livros selecionados — o que, se calculando friamente o valor do encontro por livro lido, equivaleria a pagar cem reais por encontro ao contrário dos combinados quarenta. Claro, eu sou de humanas e não faço cálculos, ainda mais friamente, e posso creditar a cada encontro um valor muito maior do que o dinheiro poderia pagar.

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Apátridas, do Alejandro Chacoff, no entanto, trata, entre outras coisas, deste mundo que como humanos dividimos e que se encontra sobre a regência do capital. Este livro, que foi um dos que li no curso que participei em agosto e setembro, além de belamente escrito, e que é o primeiro livro do autor, tem um valor especialíssimo para mim, porque, primeiro, se passa quase todo nos anos noventa da cidade em que eu vivo e, segundo, porque fez uma conexão especial com meus estudos da pós graduação.

A arte, esse registro peculiar de travessura, era mais ou menos como todos viam a arte-arte, a Arte com maiúscula: inútil e inofensiva e talvez até engraçada em doses baixas; perigosa e enfurecedora em doses altas. Um excesso de “arte”, em outras palavras, tinha outro nome: “merda”. Chacoff, Alejandro. Apátridas (p. 119). Companhia das Letras. Edição do Kindle.

O autor, Chacoff, é brasileiro, de pai chileno e de mãe brasileira com família em Cuiabá, criado nos Estados Unidos, Chile e Argentina (o título do livro começa, portanto, a se explicar) e depois no Brasil. Com uma biografia tão complicada assim, eu penso, só podia virar artista, mas não é da arte, ou do processo artístico que ele vai falar. Ao menos não como foram em outros livros que li esse ano.

Ainda no tema da autoficção, ou romance autobiográfico, como a maioria dos livros que eu li e resenho aqui hoje, o autor vai falar daquilo que viveu e de como viveu, sempre com a combinação única a cada autor de honestidade e poesia, sopesando, por assim dizer, os dois e nos carregando através dos anos até a maturidade do protagonista. O diferencial, que é um baita diferencial na minha opinião, é que o autor escolheu a parte da sua vida em uma cidade minúscula e empoeirada do centro oeste brasileiro como parte principal de sua história.

Sim, porque Cuiabá, embora seja uma das cidades mais antigas do país, era muito pouco desenvolvida até bem pouco tempo O narrador, uma criança então, nos conta como foi de caminhonete F-1000 do aeroporto até a casa do avô no bairro santa rosa pegando poeira na caçamba. O motorista era um faz-tudo da família chamado Romualdo:

Por longos trechos vi só casas esparsas, todas com teto de palha, interrompidas vez ou outra por algum outdoor melancólico de drogaria ou cursinho pré-vestibular. Torci para que o sol não descascasse minha pele, para que meus tios e primos não caçoassem de mim depois. As árvores miúdas e as planícies terrosas evocavam uma viagem de carro que tínhamos feito certa vez ao Meio-Oeste americano. “Eu e minha família somos de um lugar que é mais ou menos como Iowa” (…). Chacoff, Alejandro. Apátridas (p. 8). Companhia das Letras. Edição do Kindle.,

A partir de então até a quinta e última parte do livro, Chacoff vai nos contar de como foi a vida no seio de uma família tradicional cuiabana, com seu avô na ponta da mesa, paternalista, cuidando de todos — e como eram as visitas dos tios e primos do interior, os passeios às sorveterias com os primos, as visitas do antropólogo americano e que, certa vez, reconheceu os bororos pedintes na saída para chapada e do que o Romualdo fez pouco caso — sempre equilibrando com cuidado o pitoresco e o moderno, a memória e a poesia, com um leitmotif que trata da mesma questão do dinheiro e do lucro — assim como o conflito essencial que têm com seu pai, o que me leva ao outro motivo do porquê desta leitura me haver sido tão cara — à questão da minha tese de pós graduação.

Na minha proposta de mestrado eu tratei a questão da transformação pela qual passa a “humanidade”, primeiro em termos de identidade e segundo em termos de inclusão — à luz dos estudos da globalização feitos por, entre outros, Milton santos, e me perguntando sobre essa suposta vitória do capitalismo, do livre mercado e da humanidade Sub specie aeternitatis, e como uma revisão de tudo isso se faz urgente e necessária — e no lastro de intelectuais como Ailton Krenak eu comecei a esboçar essa ideia de uma nova razão pós globalização. O livro do Chacoff, assim como foi em um primeiro instante a leitura de Knausgard, veio para dar uma nova perspectiva, senão mesmo uma estética e modulagem na linguagem desta ideia: o mundo é vasto e complexo, segue as regras do capitalismo e da usura, mas abriga, em nichos do tempo e do espaço, algumas peculiaridades que permitem a beleza e a imaginação reinarem soltas. E o indivíduo, descrito por mim lá também como um apátrida, e que pode ou não pode ser o papel feito pelo pai do protagonista, uma figura muito importante no romance, que vivendo em um país sem fronteiras chamado capitalismo, procura ele mesmo, desesperadamente, encontrar suas fronteiras, no que pode muitas vezes tragicamente se perder tentando.

Concluindo, este é um livro incrível, não apenas porque se ambienta em uma época e lugar que raras vezes vemos em qualquer forma de arte — ao passo que o eixo Rio / São Paulo é esmagadoramente tudo que se vê por aí como descrição do Brasil — mas porque é o primeiro a fazer contemporaneamente tal retrato (o livro foi lançado em 2020) — se adiantando ao cinema, à tv, ao podcast, à academia, ao drauzio varella, à equipe da tv cidade… e elevando a literatura àquilo que sempre achei que ela fosse — a arte mais natural e ao mesmo tempo sofisticada, simples e acessível que temos alcance da alma para fazer frente a um mundo muitas vezes ocupado demais para ver o que está à sua frente.


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