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Na ausência da compreensão, a compaixão

O final da história só pode ser contado por metáforas, uma vez que se passa no reino dos céus, onde não há tempo. Talvez coubesse dizer que Aureliano conversou com Deus e que Este se interessa tão pouco pelas diferenças religiosas que o tomou por João de Panônia. Isso, no entanto, insinuaria uma confusão da mente divina. É mais correto dizer que, no paraíso, Aureliano soube que para a insondável divindade ele e João de Panônia (o ortodoxo e o herege, o abominador e o abominado, o acusador e a vítima) constituíam uma única pessoa.

O aleph (Borges, Jorge Luis) — conto “os teólogos”

Segundo Flaubert, quando um artista se torna frustrado ele vira crítico de arte. Assim sendo, eu deveria ser um destes críticos, afinal, tudo que tentei fazer na minha vida que fosse trabalho criativo foi, sempre e inevitavelmente, por água abaixo. Bem, nem tudo, e eu gosto de uma porção de coisas que eu já fiz (e como saber se esse não é o problema?). Talvez eu só esteja sendo muito crítico comigo mesmo (síndrome do impostor mandou um olá), muito envolvido com o processo de criação para me importar com o resultado, mas, ainda assim, da máxima do grande escritor francês eu parafraseio para “quando um artista se frustra tudo o que ele pode fazer, se ele ainda quiser permanecer como artista, é tentar outra vez”.

E isso vale para todo o resto — parto do princípio que todos nascemos artistas mas que a realidade vai aos poucos nos alterando — alguns são destruídos, outros esculpidos, mas ninguém, nunca, sai ileso. A busca da beleza, tão próxima do artista quanto sua própria pele, está disseminada em tudo o que se faz em todos os níveis da sociedade humana — desde la cueva de las manos a setenta mil anos atrás até o último tuíte neste mesmo milissegundo. Talvez por isso mesmo a pecha de artista seja tão pesada — a pecha de artista é uma etiqueta de outras etiquetas, um metadado, e como tal não deveria ser desprezada em um mundo superconectado.

Digo tudo isso apenas para ilustrar como as coisas têm sido para mim até o momento, escrevendo um texto em casa e ouvindo System of a Down. Não acho que minha trajetória até aqui tenha sido uma caso único — amadurecer é descobrir que você não é o único em absolutamente nada — mas sei que muitas pessoas decidiram por viver por outros meios e outros modos. Como num caleidoscópio — com suas formas se transformando à medida que giro o aparelho — eu sei no entanto que eu não sou artista algum senão como verbo; minhas outras formas de viver se misturam e se metamorfoseiam em outras para se encaixar no momento — o estudante universitário; o marido leal; o filho pródigo; o amigo de confiança; para citar algumas.

Uma vez encaixados, estes momentos serão preenchidos por ações relacionadas ao próprio princípio norteador da minha personalidade, tais como estudar; amar; ajudar; aceitar; rir e calar; no entanto algo sempre fica por se preencher cada momento. Um eterna sensação de ter esquecido alguma coisa em casa quando se vira a esquina, de não haver dado a resposta certa após sair de uma discussão, ou de não lembrar a palavra paráfrase quando se quer usar. E esta incompletude, a eterna e ontológica insatisfação humana, deve ser assim mesmo, pois um esforço maior em direção de preencher o infinito poderia fazer sucumbir todo o edifício da minha personalidade — acredite em mim, isso já aconteceu comigo uma vez, e não foi nada bonito. Pois ao passo que alguma desconstrução de si mesmo seja saudável, um desabamento não deixa nada além de destroços e entranhas espalhadas por todo lado.

Por isso tenho pesquisado acerca de tratamentos terapêuticos com profissionais do ramo com fins de testar a temperatura da água — além de autoterapias — pois talvez eu nunca faça nada disso já que uma mentalidade específica me impede, que é masculina, simplista e hegemônica, onde, preso pelo estereótipo, acredito não precisar de ajuda de ninguém para cuidar destes assuntos. Uma tolice, eu sei, mas que se mostra bastante insistente. Eu diria que tem sido até mesmo o combustível para enfrentar o mundo e sua esmagadora indiferença — como um animal raro, em extinção e perseguido por todos os lado o homem no primeiro quarto do século 21 é alguém bem confuso com todas as revoluções da sociedade, cuja capacidade de perdurar é testada cotidianamente.

Talvez seja só uma hipérbole essa coisa de não aceitar ajuda, afinal. Todos precisam de uma mãozinha de vez em quando, e é nas nossas horas mais negras que descobrimos quem realmente importa — eu já falei da compaixão de estranhos antes, uma fenômenos que sempre me fascinou. Choro e sentimentalismo podem não ser atraentes para esta parcela da humanidade mas definitivamente não se descartam a parceria e o companheirismo. Cada um se vira como pode no eterno pega para capar nosso de cada dia. O lugar mais escuro é embaixo da lâmpada, já dizia aquele ditado chinês.

Ontem um amigo que não tinha onde ficar partiu para um recomeço. Ele passara uma semana e um dia aqui em casa sob nossa proteção porque ele não queria em hipótese alguma voltar para as ruas. Das ironias da vida, um rapaz que nunca teve chances no mundo e que luta todo dia pela chance de ter um pão de dia e o teto para a noite, ficou na casa do amigo bem alimentado, bem vestido e bem protegido.

Como naqueles vídeos que estão na moda onde duas pessoas de contextos completamente diferentes são postas frente a frente, eu e ele dividimos a casa por oito dias. Neste ínterim aprendi como facilmente repito as palavras dos meus pais sobre se cuidar e cuidar das coisas que possui; aprendi também que é fácil romantizar a mendicância mas é bem mais difícil vive-la. Findada a experiência só resta torcer para que ele encontre e se estabeleça no Caminho. Mesmo sabendo que não há Caminho algum.

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