Ou: “de filósofo e de louco todo mundo tem um pouco”. Ou também: “se formou em filosofia? Parabéns agora você está diplomado para louco” (essa quem soltou foi meu primo).
Essas e outras formas de se referir à filosofia são apenas umas das muitas coisas que eu ouvi ao longo dos anos como estudante de filosofia até eu descobrir o grande alívio que era conhecer pessoas por outra pergunta que não a tão famigerada “o que você faz da vida?”. Até porque, de certa forma, minha vida toda foi uma maneira de contornar essa pergunta.
É inegável que comecei filosofia sem saber exatamente por que queria fazer filosofia; me mudara para a cidade grande e precisava fazer alguma coisa da minha vida. Por que não faculdade? E por que não uma faculdade “bem doida”?
A verdade é que a faculdade de filosofia não é assim tão doida. Você encontra pastores, ex-padres e até advogados. Muitos deles precisando trabalhar e sustentar uma família, só vão às aulas e partem quando acaba. Entram dezenas mas poucos se formam. E sempre de maneira esparsa. Você encontra muita gente mais velha em filosofia, com mais de uma graduação, e também muita gente perdida igual você (no caso, igual a mim).
Claro, uma faculdade é uma faculdade, ela tem um valor próprio, e estou aqui para dizer isso mesmo. Mas não apenas isso, e sim, que a filosofia tem um valor mais especial ainda, por mais que ninguém esteja afim de admitir... o valor de aprender a questionar e também o valor de dar valor — a moral e a ética é um assunto seriamente estudado nesta faculdade.
Isto, o desenvolvimento intelectual de um modo geral, se dá de muitas maneiras — e nem uma faculdade inteira seria assim tão necessária para que se aprenda filosofia, mas o estudo sistemático — bem como o estudo sobre como estudar e aprender, faz milagres. Por isso é tão importante participar ativamente da defesa das universidades, por dentro e por fora. Ainda mais em tempos de ostensivo autoritarismo.
O meu primeiro ano de faculdade foi uma volta aos anos sessenta. Ácido e Cannabis. The Doors e Hendrix. Camisetas tie dye e tudo. Meu último ano foi uma luta incessante para fechar o ciclo com um desafio para o qual eu estava completamente despreparado: a monografia. Muitas experiências (algumas fora do corpo inclusive) pelo caminho e desenvolvi o desejo de falar sobre o aspecto religioso da filosofia — um assunto que eu nunca dominei mas que parecia ser inevitável naquela altura.
Como eu sempre gostara de literatura achei que Kierkegaard seria ideal, afinal ele inspirou autores como Kafka e o brilhante Nietzsche, que na Alemanha é estudado como um autor literário e não como um filósofo, talvez pelo aspecto assistemático de sua filosofia. Também ele, Kierkegaard, fora citado como leitura pelo meu poeta favorito nos duros anos da adolescência: Renato Russo. Não imaginava que ele era tão foda, no entanto.
Kierkegaard foi um autor que trouxe à própria vida as atitudes de seus ensinamentos. Ele tomou decisões difíceis e atravessou ele próprio os “estágios da vida” que ele definiu posteriormente — saindo de uma vida de prazeres estéticos para buscar uma vida de entrega religiosa, renunciando a muito custo um casamento cômodo que traria a ele uma tranquilidade típica do estágio moral — e intermediário — da vida. Ele produziu muito e morreu sozinho em Copenhagen. Como todo filósofo digno deste epíteto, como veremos mais adiante.
Como toda filosofia, a sua filosofia buscava trazer luz à questão principal do homem e da felicidade. O que é felicidade, e como ser feliz? Também, ele foi um dos primeiros a fazer um movimento realmente enérgico e contrário à cosmovisão hegeliana que negava ao homem qualquer lugar que não o de mera engrenagem; ele falou sobre desespero e falou sobre o ser autêntico. Tudo amparado por uma compreensão profundamente cristã do homem.
Este ano faz um ano que me batizei; isso não me tornou cristão no entanto. Ser Cristão, eu aprendi com ele, é um eterno vir-a-ser, e não um produto acabado. É preciso fé, e é preciso dar um salto sob abismo do desespero antes de saber-se cristão. Ainda assim, eu não clamo somente à minha bastante rasa compreensão de Kierkegaard minha conversão... sou uma pessoa bastante confusa às vezes. Talvez tenha me batizado porque gosto do som do latim e do cheiro da mirra. Vai saber.
Nietzsche iria partir do princípio estabelecido por Kierkegaard quando viesse falar sobre o indivíduo e sobre a destruição do status quo através de uma reavaliação de todos os valores; mesmo ateísta ele sabia se aproveitar de alguns conceitos quando lhe traziam força. Amor Fati, dos estóicos, é um deles. Foi graças à ideia de resistir através de qualquer obstáculo — e a eterna repetição de tudo sendo uma delas — com um amor inabalável à própria condição que ele conseguiu dar prosseguimento à sua cosmovisão sobre o Eterno Retorno.
Isso não deveria ser novidade, filósofos realmente tentam explicar o todo ou pelo menos demonstrar que é impossível explicar o todo (deixando bem claro que eles foram os primeiros a descobrir isso). É da natureza deles dar sentido ao universo e fazê-lo através de uma vida de estudos e difíceis renúncias. Não estou exagerando quando afirmo: todo filósofo digno do nome sofreu a vida toda e morreu sem reconhecimento. TODOS.
Por isso, desconfie de qualquer auto-proclamado filósofo e principalmente dos incensados pelos poderes estabelecidos. Mesmo Platão se decepcionou quando tentou aplicar suas ideias. Mesmo Marx morreu na pobreza. Mesmo Paulo Freire nunca conseguiu ajudar seu próprio país ainda que fosse reconhecido em tantos outros.
Também, youtube não é plataforma de ensino de filosofia, ainda que ajude; aforismo de verdade não se expressa em 140 caracteres e leva uma vida inteira para se caracterizar como tal. Lacração não é discussão, e não concluir é tão bom quanto calar... Modéstia é ingrediente básico de quem busca a verdade.
É páscoa amanhã e eu gostaria de desejar um bom feirado, mas não saberia fazer isso sem ter que parar; eu prefiro lembrar a todos que estão passando pela mesma falta de reconhecimento, pela mesma falta de compreensão que os filósofos todos passaram— os estrangeiros em seu próprio país — que isso é perfeitamente normal e terrivelmente comum. Raro é quem nunca é rejeitado em nenhum momento.
Assim sendo, é preciso manter acesa a esperança de que um dia haverão sorrisos e abraços; que não serão mais necessárias as máscaras com as quais no escondemos. Este dia pode ser amanhã, quem sabe. Nunca deixe de lutar. Nunca deixe de resistir.