Ontem eu peguei o anki para valer aqui1. Fiquei boas horas trabalhando nele, e criei baralhos com os temas que quero revisar - algumas noções chatas sobre gramática, mas especialmente os melhores conselhos dos livros geniais de escrita que tenho aqui, entre eles, Tirando de Letra dos Mouras, Como Escrever uma Tese, do Umberto Eco e Como Escrever Bem do William Zinsser. Eu já li eles completamente antes, mas pouco tenho revisitado.
Estes livros resumem a essência daquilo que considero boa escrita, e por isso me dediquei com tanto afinco a criar flashcards; eles não ensinam apenas a escrever bem - para ser lido, para ser publicado ou para garantir a preservação da mensagem - mas eles passam também a importância da postura e da visão de mundo implícita no papel de ser alguém alfabetizado. Umberto eco vai nos falar sobre a importância da honestidade intelectual e de escolher objetos de estudo com os quais se pode efetivamente lidar para, entre outras coisas, não desperdiçar o tempo de outros pesquisadores. Zinsser nos mostra que o relacionamento com a língua é dinâmico e que o autor está oferecendo no seu texto mais do que o assunto de que se fala, mas a própria humanidade e paixão do autor por aquele assunto. Os autores de Tirando de letra (Chico e Wilma Moura) fizeram um livro que é ele próprio a imagem e semelhança daquilo que professa: conciso e útil. A impressão que tenho lendo ele mais uma vez, é a de que os autores se divertiram fazendo aquilo.
E a linguagem é isso mesmo, uma coisa muito divertida. Ela não tem a pretensão de ser a representação fiel da realidade e só temos a ganhar quando introjetamos essa noção bem fundo em nós. Passamos a notar, por exemplo, a potência da poesia, com sua força e ternura em iguais medidas; ou a sutileza da literatura, para mim a mais fiel das companheiras. Mesmo dicionários passam a serem entretenimento, com uma palavra levando a outra e depois à outra, criando uma rede mágica de significados que é realmente nossa. A realidade insere-se aí, nesta frestras, quando percebemos que saímos um pouco mais 'sabidos' daquela interação — pois agora estamos um pouco mais cientes daquilo que não sabemos ainda.
Encontramos eco disso na experiência digital de abrir os hiperlinks da wikipedia, ou de rolar um feed de tik tok ou de outra mídia social — e descobrir uma coisa nova, nunca antes vista, que nos entretém em algum lugar além do tempo. Não à tôa nos vemos voltando a isso muitas e muitas vezes — talvez mais do que devêssemos para nosso próprio bem. A pequena dose de dopamina que estas interações trazem causa uma estimulação para a qual não temos uma contraparte, e que em última instância nos exaure e rebaixa nossa linha base desta mesma dopamina — causando uma subversão onde o desânimo crescente é causado por aquela mesmo atividade que nos animou por tanto tempo. É nesse momento que você se vê, por exemplo, com o celular na mão sem necessariamente ter nada para fazer nele; ou quando começa a rolar o feed ignorando quase todo o conteúdo que ele oferece: por dentro a rodinha de hamster em que corre seu cérebro está apenas procurando uma única coisa — a chance de ter aquele pequeno pico de dopamina sem compromisso outra vez.
Ler é difícil. Alguns dispositivos eletrônicos facilitam isso para nós, mas em essência, nada do que se vê em tela foi feito para ser literatura. E digo isso ciente de que é controverso — quem sou eu para dizer que algo é ou não é literatura? Mas "foi feito para ser", não exclui a possibilidade de que eventualmente algo ali possa ser, sim, literatura. Afinal, se trata de manifestação humana (até onde sabemos) com fim de expressar algo. Basta colocar para imprimir e pronto, virou documento ou até arte: como aqueles tuítes impressos e emoldurados que vemos por aí — uma peça de arte para Duchamp nenhum botar defeito. Porém, e esse e meu ponto, essa é a exceção, e não a regra. A internet é, antes de mais nada, um imenso experimento capitalista, com áreas mais ou menos ativas do que outras, e como tal, nela se fala especialmente a linguagem do capital, ou do pós-capital, se preferir seguir a noção de McKenzie Wark2, onde o capital foi substituido pelos algoritmos e suas microinfiltrações. E, enfim, não podemos fazer literatura antes de romper-mos com a linguagem do lucro, como dizia Cortázar em Jogo de amarelinha, um dos livros mais divertidos que já li:
Morelli parece convencido de que se o escritor continuar submetido à linguagem que venderam a ele junto com a roupa que veste e com o nome e o batismo e a nacionalidade, o único valor de sua obra será o estético, valor esse que o velho parece desprezar cada vez mais. Em algum lugar ele é bastante explícito: na opinião dele não se pode denunciar coisa alguma se o fazemos no interior do sistema ao qual pertence o denunciado. Escrever contra o capitalismo com a bagagem mental e o vocabulário que derivam do capitalismo é perda de tempo.
Precisamos nos livrar da noção exploratória que o capitalismo nos incucou se quisermos escrever de forma autêntica. E sem noção disso, com a facilidade da auto publicação, da postagem e da divulgação online, nos vemos em um mundo onde se lê muito, mas nada de substancial qualidade. E tudo bem, concluo, a web não tem nenhuma obrigação de ser nada além daquilo que ela é, e certamente não tem obrigação de ser literatura. E com a IA generativa, essa lacuna se aprofundou de forma ireconciliável, pois elas até escrevem, reescrevem, analisam e resumem texto, mas ainda não entendem nada daquilo que está ali escrito. Comem conteúdo e regurgitam novamente, para praticidade extrema dos usuários — e ignora solenemente qualquer sutileza, seja de ideia, seja de raciocínio que por ventura aquele conteúdo engolido tivesse.
Notei isso ontem, tentando usar essas IAs para criar notas de estudo, de livros que eu mesmo já havia lido (importante lembrar) e notando a incapacidade do deep learning ser deep e ser learning; colocava a atenção nas partes erradas, e pegava anedotas do Zinsser em vez de focar em princípios. E eu mudei o prompt muitas vezes, usando o modelo mais recente, com pouco progresso. A IA não fazia ideia, mas o Zinsser (que era a favor de usar ferramentas que ajudassem a melhorar e agilizar a escrita como o Word) acabara de driblar a IA, e marcar um golaço para a boa escrita.
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A repetição espaçada é uma técnica de aprendizado que otimiza a memorização de informações ao revisar conteúdos em intervalos crescentes de tempo. O Anki é um software de flashcards que utiliza essa técnica para ajudar usuários a reter informações a longo prazo. Seu valor é especialmente significativo por ser gratuito, acessível, e personalizável, permitindo a criação de materiais de estudo eficazes sem custos adicionais. ↩
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Pós-capital" aqui refere-se a uma era onde o capitalismo tradicional, centrado na produção de mercadorias e na extração de mais-valia através do trabalho assalariado, é substituído por um sistema dominado pela extração de valor a partir da informação, dados e atenção. Neste novo regime, a produção de valor ocorre não apenas no trabalho, mas também no lazer e nas interações cotidianas, principalmente via tecnologias digitais e plataformas online. A economia vetorialista, como Wark descreve, explora continuamente esses dados, moldando subjetividades e relações sociais. mais informação nessa entrevista ↩