Mosaic, um jogo eletrônico
E somos todos parte de um grande mistério, então porque não celebrar?
Inicie a manhã dizendo para si mesmo: hoje devo cruzar meu caminho com os intrometidos, os ingratos, os arrogantes, os traiçoeiros, os invejosos e os mal-humorados. Tudo isso lhes afeta pelo fato de serem ignorantes do bem e do mal. Eu, porém, que contemplei a natureza do bem, e vi a beleza, e que igualmente observei o mal, e percebi o seu horror, e que ainda refleti sobre a natureza daqueles que incorrem no erro, e descobri que eles também me são aparentados, não somente pelo sangue ou pelo nascimento, mas por participarem da mesma inteligência e da mesma origem divina, já não posso temer que me causem dano algum.
Meditações de Marco Aurélio (Aurélio, Marco) — Livro II
Tenho dormido meio mal esta semana. Acho que não chegam a sete horas em média por noite, e tudo indica que é causada por, entre outras coisas, uma mistura de ansiedade com distrações eletrônicas. Ironicamente uma pesquisa recente mostrou que o sonho é o videogame do cérebro, que repassa uma série de situações e cenários no teatro da mente com fins de aprendizagem e fixação.
Por muito tempo eu desprezei o sono, pensando que saberia lidar com o estresse, e que ele era um preço razoável a pagar por qualquer coisa que eu quisesse — como atravessar a noite com pensamentos, divagações e planos. Por mais absurdo que possa parecer tudo indica que o preço de uma noite mal dormida é de fato muito alto. E que se por um lado uma cultura de hiperatividade puxa as pessoas para mais e mais, de outro se encontram aqueles que não podem dar-se ao luxo de não trabalhar só porque este trabalho é noturno.
A insônia é também uma consequência natural (imagino) do confinamento a que fomos submetidos. Sem caminhar nem mesmo para refletir um pouco, quanto menos para queimar os carboidratos, pensando na queda do PIB, na iminente recessão, nos números galopantes da pandemia, naquele seu primo que insiste em defender o presidente, no aquecimento global e no sofrimento que passam os povos originários — e bebendo duas, três vezes por semana ainda por cima, é claro que não dormir quase nada se torna o novo normal.
Aos poucos eu encontro, no entanto, proposições para sair deste imbróglio. Uma delas é meditar, ao acordar, muito antes de sequer ligar o celular. Ativar o sistema parassimpático e se conectar com uma fonte segura de aconselhamentos que sempre está a um par de respirações atentas de distância — é uma forma barata, imediata e duradoura que achei para lidar com as questões mais complexas que acumulo ao longo da semana; meditação pode não ser uma panaceia e nem dar resultados imediatos a quem nunca praticou antes, mas com certeza é uma opção real.
Não que eu tenha algum agenciamento sobre o que é real. Com tantos dias em casa, com um trabalho à distância que me coloca frente a frente com interfaces virtuais e nenhuma humanidade, mesmo com os jogos eletrônicos, quando não praticados em modo de multiplayer (donde fiz até um amigo recentemente), como alegar contato com o que é real? A cultura, tão apreciada por aqui, é ela mesma uma adulteração do real — uma deturpação do estado de natureza porque, afinal, quem quer viver como animal? E, indo direto ao ponto, com tantas vantagens deste lado do campo, quem realmente se importa com o real?
Mas a questão realmente pertinente nesse assunto é por quanto tempo ainda podemos seguir fingindo que não é a hora de retomarmos a responsabilidade pelos nossos atos. A realidade, afinal, sempre prevalece. Temos visto notícias de todo lado de mudanças de paradigmas, de novas atitudes, saudáveis e revigorantes — que levam em conta a exaustão não apenas dos sistemas naturais mas de nossa própria visão limitante de progresso, mas uma questão que permanece: é uma mudança de atitude duradoura ou apenas uma aderência de ocasião, pronta para voltar às velhas práticas assim que sentir que o perigo passou?
Castanha do Pará — 29 Agosto 2018
Li esta semana uma HQ chamada Castanha do Pará, do Gidalti Jr e que conta um dia na vida de um menino de rua em Belém do Pará — entremeado com um diálogo que explica a tragédia que o colocou naquela condição. A arte é maravilhosa e generosa, e mostra um pouco da cidade que conheci em 2009. É uma obra realista em muitos níveis profundos — ainda que os meninos possuam cabeça de animais que representam seu espírito em estado natural — os adultos, corrompidos que são, têm cabeça normal e são, no fim das contas, a razão de todos os problemas.
Muito da história se passa no mercado Ver-o-peso, tradicional ponto turístico da cidade, e é retratada ali com paredes azuis, e que na minha memória era um lugar com paredes amarelas. Pensei que era porque o autor conta uma história dos anos noventa, a ocasião em que acaba o campeonato estadual, mas eu pesquisei fotos recentes e descobri que o mercado sempre foi azul. Será que eu sonhei que estive lá? E se estamos todos destinados a esquecer aquilo que vivemos (para logo depois nós mesmo cairmos no esquecimento) então qual a importância fundamental da experiência? Mais ainda, qual a importância da sensação, do ordenamento e da hierarquia que impomos a estas mesmas sensações?
É propriedade de uma grande e boa mente cobiçar, não o fruto de boas ações, mas as boas ações em si, e buscar um homem bom mesmo depois de ter encontrado homens maus.
Sobre os Benefícios (Sêneca)
Por que é fato conhecido que somos enviesados em nossas percepções e que temos, de fábrica, uma configuração pré-definida — e é por isso que passamos tanto tempo em celulares, é por isso que temos tanto medo de uma bronca do chefe, de ser cancelado na internet ou as agudas necessidades de doce uma vez ou outra. Dizem as melhores vozes na área que é porque somos fruto de ambiente e de herança genética que somos assim — e nenhuma das pontas, por mais desenvolvida que esteja nos seus respetivos campos de saberes, é uma ponta amarrada. E que bom que é assim, senão donde viria a poesia, a arte, o canto e a sorte?
Transitórios que somos ainda temos dificuldade para ver aquilo que está além do horizonte por pura incapacidade imaginativa. Não sabemos nem se nossos dentes não estão sujos com uma casca de feijão, quem dirá o que aguarda o fim da pandemia, do capitalismo ou do século. Alguma coisa virá com certeza, e eu estou certo que teremos capacidade de lidar com isso também — não as nossas crianças, mas as crianças delas. Elas são a minha maior esperança, o meu maior incentivo. O não-nascido dos budistas, o Jesus vindouro dos adventistas. Não um ser, mas sim, também, um ser, um espírito em uma época, um advento. Por elas até mesmo a realidade, aqui e agora, sou capaz de encarar.