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O PARADOXO DA FÉ EM KIERKEGAARD

CAPA

Capa: Sacrifício de Isaac (por Abraão), pintado por Rembrandt, 1635, óleo sobre tela, 193 × 133 cm, Museu Ermitage.

Sinopse

Este livro tem o objetivo de abordar de maneira minuciosa a obra Temor e Tremor, datada de 1843, escrita pelo filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard, e o intuito de decifrar seus códigos a respeito da fé e do papel da fé na existência singular do indivíduo. Também pretende dar uma visão geral sobre o trabalho do filósofo que por aqui é muitas vezes simplesmente conhecido como o “crítico de Hegel”. Também discute-se o porquê de ele ser considerado “o pai do existencialismo”. Quais são suas principais ideias, e quais são seminais para presente trabalho, como subjetividade, fé e paradoxo. Finalmente, discute-se por que Abraão passou por uma angústia religiosa antes de realizar-se como o pai da fé e por que a fé é a maior paixão do homem. Do que se trata o salto da fé e o que é o Cavaleiro da fé. Um breve olhar sobre a obra cinematográfica Ordet de Dreyer de 1955 e como ela se relaciona com a filosofia de Kierkegaard.

Introdução

Capítulo I

1. Sobre Temor e Tremor

1.1. Pensando a Existência

1.2. Características Centrais da Filosofia de Kierkegaard

1.2.1. Salto da Fé e Fé em Kierkegaard

1.2.2. Subjetividade em Kierkegaard

1.2.1.1. Moralidade Em Kierkegaard

Capítulo II

1. A Realidade da Fé

1.1. Acreditar em virtude do Absurdo

1.1.1. Os Paradoxos da Fé em Kierkegaard

2. Elogio de Abraão

2.1. Subida ao Monte Morija

2.2. O Cavaleiro da Fé

2.3. A Maior Paixão do Homem

3. Ordet

Considerações finais

Referências Bibliográficas

INTRODUÇÃO

Temor e Tremor, do original dinamarquês, Frygt og Baeven, foi um trabalho de Søren Aabye Kierkegaard, sob o pseudônimo de Johannes de Silentio[1]. O título tem referência da Bíblia nos seguintes versos: “De sorte que, meus amados, assim como sempre obedecestes, não só na minha presença, mas muito mais agora na minha ausência, assim também operai a vossa salvação com temor e tremor (Filipenses 2:12)”, e: “Temor e tremor vieram sobre mim; e o horror me cobriu (Salmos 55:5)” mas provavelmente é apenas a maneira que o autor conseguiu para dar uma ênfase maior ao tema do livro, isto é: tornar-se indivíduo singular em oposição a uma vida impensada e relapsa, indulgente na ética (KIERKEGAARD, 1979, p. 154).

Em Temor e tremor o autor reconta um evento acontecido na vida do personagem bíblico Abraão (Genesis 22:2). Ele nos dá a entender a partir deste episódio que há momentos tão cruciais na existência humana, que é preciso realizar uma suspensão teleológica da moralidade em vista da realidade paradoxal da fé, pois que diante de tais eventos o salto da fé assume o papel de único recurso plausível. Seus possíveis desdobramentos e consequências filosóficas são todas analisadas nesta obra única e o seu corolário será a declaração de que a fé é maior paixão do homem, tratando-se, portanto, de um estudo da subjetividade humana.

Kierkegaard, de fato, não tinha outra pretensão além de demonstrar a profundeza da alma humana quando enriquecida pelo belo ornamento da fé: o sacrifício de Isaac por Abraão neste caso é o leitmotiv da obra inteira, e suas questões tratam da existência humana, e do espírito humano que supera a si mesmo de maneira espetacular, ainda que à custa de uma angústia religiosa incomensurável.

O presente trabalho não tem nem pode ter a pretensão de se aprofundar em toda a filosofia de Kierkegaard; tal proeza ainda está por acontecer, vista a magnitude desta mesma obra. Tem sim, a pretensão de decifrar esta obra em particular, desvendando suas referencias, seus códigos e sua linguagem. O método empregado será o de ir analisando a obra a partir de suas primeiras palavras, mas sem necessariamente levar este método a cabo; tendo em vista uma leitura totalizante em detrimento de uma ordem sistemática. Isso decerto serve melhor para estudar um autor como Kierkegaard, cujos escritos muitas vezes se parecem com poesia.

Kierkegaard, que ficou conhecido como filósofo existencialista, o foi por méritos próprios. Iremos discutir brevemente quais as marcas distintivas de seu pensamento existencialista e por que ele é mais do que, como mui simplesmente dizem na academia e em livros didáticos, o famigerado “opositor de Hegel”.

A obra está estruturada em problemas e depois se conclui com um epílogo. Tais problemas são precedidos por um prólogo, atmosfera (expectoração), elogio à Abraão e uma efusão preliminar.

O presente trabalho vai abordar a obra através da estrutura de tópicos, resumindo: Uma apresentação da obra e seus principais motivos; o Existencialismo; por que Kierkegaard é considerado o pai do existencialismo; As principais características de sua filosofia — tópicos sobre subjetividade e fé em Kierkegaard; e um prolongamento deste último com um subtópico para moralidade, que tem a função de introduzir próximo capítulo que tratará destes mesmos temas em detalhe. Ainda: O que é o Paradoxo da Fé, e qual é o papel do Cavaleiro da Fé. Um breve estudo a partir da obra cinematográfica de Dreyer, sua beleza inspiradora e sua relação com a filosofia de Kierkegaard. Alguns conceitos novos relativos à evolução do pensamento de Kierkegaard, e a conclusão

[1]KIERKEGAARD, Søren Aabye. Diário de um sedutor; Temor e tremor; O desespero humano 1813–1855. Traduções de Carlos Grifo, Maria José Marinho, Adolfo Casais Monteiro. Editor: Victor Civita, Abril Cultural. São Paulo. 1979 (Os pensadores).

CAPÍTULO I

1. Sobre Temor e Tremor

“Antes de Abraão ser, eu sou” (João 8:58). Assim Jesus se proclamaria como não diferente de Deus em termos de identidade. O que se deduz então é que Abraão é o ponto de partida de toda a crença em Deus e que antes dele só havia Deus. Na cultura popular Leonard Cohen já havia cantado em “Story of Isaac”: “Um esquema não é uma visão, você nunca foi tentado por um demônio ou um deus[1]” (em inglês: A scheme is not a vision, you have never have been tempted, by a demon, or a god) e reza uma anedota popular que Isaac disse para seus amigos quando chegou à sua casa, “Rapaz, você não vai acreditar: o velho ‘tava’ louco querendo me matar! Se eu não fosse ventríloquo…”.

Brincadeiras à parte, tudo isso serve apenas para demonstrar a importância que o mito bíblico de Abraão e o pedido de Deus pelo sacrifício de Isaac têm em toda a história humana. Mas data de 1843 uma publicação de um filósofo dinamarquês chamado Kierkegaard um dos estudos mais eloquentes sobre este evento; suas possíveis consequências e o corolário da obra com a asserção de que “A fé é a maior paixão do homem” (epílogo). Com isso ele quer afirmar que dentre todas as possibilidades do espírito humano, a mais poderosa, a mais arrojada das ações nasce da fé, e que a fé a origem de toda a fortaleza espiritual.

Nesta obra, Kierkegaard parte em busca de entender a angústia que se passou no coração de Abraão quando designado por Deus para sacrificar seu único filho: “E disse: Toma agora o teu filho, o teu único filho, Isaac, a quem amas, e vai-te à terra de Moriá, e oferece-o ali em holocausto sobre uma das montanhas, que eu te direi (Gênesis 22:2)”. Abraão tinha a escolha de completar a tarefa ou se recusar a cumprir as ordens de Deus, ou, ainda, sacrificar um cordeiro no lugar, correndo o risco de decepcionar Deus. Ele se resignou à jornada e à perda de seu filho, e por isso ele é designado como o pai da fé.

Para Kierkegaard a resignação infinita é:

(…) O último estádio que precede a fé, pois ninguém a alcança antes de ter realizado previamente esse movimento; porque é na resignação infinita que, antes de tudo, tomo consciência do meu valor eterno, e só então se pode alcançar a vida deste mundo pela fé. (KIERKEGAARD, 1979, p. 135).

Uma vez que Abraão se tornou consciente de sua validade eterna, chegou à porta da fé e agiu de acordo com o que a situação lhe pedia, enfrentando todas as dificuldades impostas e indistinguíveis da situação em que vivia, tornando-se assim, como se verá adiante, um Cavaleiro da Fé.

Nestas condições pode parecer que nada é mais fácil do que o paradoxo. Torna-se-me (sic) então necessário repetir que, se cremos nisso firmemente, não se é cavaleiro da fé, porque a única legitimação concebível é a tribulação e a angústia, ainda que não se lhe possa dar uma acepção geral, porque então suprime-se o paradoxo. (KIERKEGAARD, 1979, p. 179).

Outra interpretação comumente atribuída é que a obra possa ser lida, ao menos nas entrelinhas, como um meio que o autor achou de libertar-se da dor causada pelo rompimento com Regina Olsen, sua noiva[2]. Ele, Kierkegaard, seria Abraão e ela seria Isaac, a quem ele deve sacrificar, isto é, divorciar-se, uma vez que ele se julga inadequado para ela.

1.1. Pensando a Existência

Quando se fala em existencialismo no contexto kierkegaardiano deve-se ter em mente que isso nunca seria possível se fosse um sistema fechado, posto que seja exatamente este o problema do qual parte Kierkegaard. Nisso ele iria de encontro com a filosofia hegeliana, especialmente sua lógica. Em Hegel (1770–1831), dito de uma maneira bastante simplista, a objetividade não tem limites aparentes e todos os paradoxos estão resolvidos. É o idealismo em sua melhor forma. Kierkegaard se opõe a tudo isso, e, portanto, o mais frequente quando se lembra de Kierkegaard é em sua oposição à Hegel. Mas esta talvez não seja a maneira mais acurada de referenciar o autor. Podemos resumir a discordância de Kierkegaard em basicamente três áreas: (1) a importância da subjetividade do individuo, (2) a falibilidade da lógica e da razão dialética para explicar o mesmo indivíduo e, por extensão, a importância do paradoxo na existência humana (3). Ainda: sua explicação do cristianismo é falha, pois ignora a importância destes mesmos paradoxos. No entanto Kierkegaard adere a algumas ideias de Hegel, principalmente no que concerne à estética.

Pra Kierkegaard a subjetividade era tão o até mais importante que a objetividade quando se referia à verdade da existência humana. Para ele os filósofos antes dele exageravam ou se equivocavam frequentemente dando mais valor à objetividade e ignorando o indivíduo, seja por falta de meios para explicar a realidade deste indivíduo, seja por mera racionalidade desconectada da verdade cristã. O Hegel último, que primava pela atenção à razão dialética que se tornava manifesta na história e nos atos dos chefes de estado, era um dos maiores culpados pela crença de que o indivíduo não tinha razão de ser, e que um estudo da existência individual era impossível ou perda de tempo.

(2) Para Kierkegaard, o coração do homem é o lugar de Deus e, portanto, da verdade cristã. Portanto é impossível experimentar a verdade de Deus através da mentalidade mundana e fragmentada do Homem. Mais ainda, a lógica sozinha, por melhor que sejam seus argumentos, seria limitada, pois não pode conviver com a incerteza imposta pelo paradoxo. Uma das primeiras obras assinadas por pseudônimos de Kierkegaard, “Ou, ou — fragmentos da vida” (Enten/Eller, 1843) teria esse título primeiro como maneira de exprimir a alternativa que esta suprimida na lógica dialética hegeliana e, portanto, desafiando o homem a dar o salto através do abismo do paradoxo. Também aponta para o desenvolvimento da subjetividade humana através do rompimento com velhas maneiras de ser.

Kierkegaard nunca quis dizer que o paradoxo (3) é o inimigo. Para ele esta angústia que nasce do paradoxo poderia até mesmo ser o remédio amargo que acorda o cristão para sua condição pecadora e singular na existência. No entanto, é por causa deste mesmo sofrimento e inadequação provocado pelo paradoxo que se faz necessário um avanço para a outra margem, impedindo, portanto, que se materializem verdades objetivas sobre o estado do homem. Para Kierkegaard, ao contrário do que apregoa Hegel, a fé, somente, pode ser a razão de existir do homem dentro do sentido da existência.

Kierkegaard, como um ilustre cidadão dinamarquês do século XIX, estava ciente de que estava indo contra o que era considerado o principal movimento intelectual de sua época, a saber: o racionalismo, e estava ciente de que suas conclusões só seriam reconhecidas muito mais tarde. De fato, ele tornar-se-ia lembrado por ter trilhado um sendeiro próprio e também por ser o “pai do existencialismo[3]”. Mas mais do que suas críticas ao hegelianismo, ele é conhecido principalmente por suas intervenções na política da igreja dinamarquesa moderna, seu fervente engajamento pela revitalização da fé cristã e sua experimentação literária com figuras bíblicas. O conjunto de sua obra é um guia de iniciação à vida: suas lições são válidas em qualquer época, principalmente por que estamos sempre nos reinventando. Como ele mesmo diz:

Aquilo a que chamo propriamente humano é a paixão, através da qual cada geração compreende inteiramente a outra e se compreende a si própria. Assim, no que respeita ao amor, nenhuma geração aprenderá a amar com outra, nenhuma começa senão no princípio, nenhuma geração ulterior tem tarefa mais breve que a precedente; e se não quer, como as anteriores, contentar-se de amar, e deseja ir mais longe, passou de vãs e censuráveis palavras. (KIERKEGAARD, 1979, p. 184).

Existência para Kierkegaard tinha um significado muito especial, muito embora ele só a afirme de maneira indireta. Para ele a existência humana é para ser guiada pela paixão. A existência não pode ser classificada em qualquer tipo de conceituação, mas o indivíduo teria, ainda sim, o dever de se tornar autêntico a si mesmo em face de um mundo desprovido de autenticidade. Este termo, que seria cunhado somente no séc. XX por autores existencialistas Jaspers e Heidegger, já poderia ser sondado nos escritos de Kierkegaard quando ele fala de uma verdade “pela qual se possa viver e morrer”.

Em última análise, a existência humana é repleta de angústia em todas as suas relações — consigo próprio, com o outro e com Deus — porque estas relações estão sempre no campo da incerteza e do improvável. Portanto, a possibilidade é sempre o maior peso nas decisões do indivíduo; é através da escolha que nos tornamos indivíduos.

Angústia, como definido em Kierkegaard, é o sentimento relacionado a algo indefinido e que assola o homem quando defrontado com a possibilidade aterradora da existência, sendo, portanto, o sentimento definidor da existência do homem enquanto ele mesmo. Por isso que a angústia é, por excelência, o único sentimento que expressa fielmente a condição pecadora do homem, pois mesmo a relação com Deus, que é a mais nobre, seria angustiante por causa dos paradoxos inerentes da fé: inspirando desconforto em relação à nossa passagem na terra; desafiando nosso senso de dever e pondo em xeque essa mesma fé. E é este o absurdo que só quem é portador de uma fé verdadeira pode conhecer, e mais ainda, suportar.

1.2. Características Centrais da Filosofia de Kierkegaard

Kierkegaard geralmente é considerado o “Pai do Existencialismo”. Isso significa que ele é o precursor do movimento que se tornaria muito popular nos anos seguintes à Segunda Guerra Mundial, e que fortemente influenciou muitas disciplinas além da filosofia, incluindo a teologia, teatro, arte, literatura e psicologia.

Apesar disso, ainda é cedo para dizer se, de fato ele influenciou este movimento filosófico ou se eles foram coisas distintas, tendo ambas as hipóteses pareceres favoráveis. O que se sabe com certeza é que para sua época, Kierkegaard foi um dos pensadores mais ousados, que seus escritos são extremamente coerentes com essa visão que do individuo, de que ele tem uma importância na história que é plenamente explicável, e que, a despeito de todos os desafios, ele tem a possibilidade de se tornar melhor. Mais ainda, ele afirmaria que nem mesmo a sociedade, nem a igreja, podem decidir como o indivíduo vive a sua vida, e que apenas a reflexão deliberada dele mesmo por ele mesmo pode ser sua guia. Um trecho famoso dos seus diários[4] nos dá uma ideia deste ideal kierkegaardiano de viver para a reflexão filosófica na qual ele diferencia o dever do indivíduo e a necessidade deste mesmo indivíduo em face da existência no mundo:

O que eu realmente preciso é ter clareza sobre o que devo fazer e não o que eu preciso saber, a não ser na medida em que o conhecimento deve preceder cada ato. O que importa é encontrar um propósito, para ver o que realmente é que Deus quer que eu faça; o mais importante é encontrar uma verdade que é verdade para mim, encontrar a ideia para o qual estou disposto a viver e morrer. (KIERKEGAARD, 1835).

A objetividade, para Kierkegaard, não era a ordem última das coisas, e neste sentido ele foi até mesmo um visionário ao alertar sobre os perigos e a necessidade de cada pessoa nascer para si mesma, libertando-se de tudo o que é mera convenção. Posicionando-se categoricamente contra, afirmando que em primeiro lugar vem o indivíduo em sua existência particular e singular, e que a razão não tinha poder suficiente para explicar tudo dentro de meras categorias lógicas, e afirmando que, portanto, a razão humana é sem limites, Kierkegaard defendeu o indivíduo em face de um idealismo que o ignorava. Com exceção de alguns românticos, era a primeira vez que alguém tomava esta posição. Era uma época que herdava o iluminismo e todas as opiniões estava a favor dos avanços científicos, e nenhuma a favor do homem nu diante das circunstâncias da vida. Kierkegaard acusaria sua sociedade de fria, pois estava apartada da paixão da vida.

No entanto, Kierkegaard dava razão a uma aplicação da racionalidade e da ciência, desde que andasse ao lado da compreensão espiritual do homem. Para ele a razão sozinha não seria capaz de abarcar o todo da existência, mas a subjetividade humana, ao lado de uma introspecção profunda que toma conhecimento de si, teria. Ele se inspiraria em Sócrates, como fundador do individualismo, e em sua abordagem assistemática da vida; sua maior preocupação era o indivíduo enquanto ser que existe e é; possuidor duma subjetividade maior, portanto, do que as restrições objetivas dadas por qualquer teoria ou sistema.

Para Kierkegaard, a mera lógica não poderia explicar a maneira única que a fé tem de operar a vida do homem, através de rompimentos, rupturas e paradoxos. Também o sistema hegeliano peca em tentar entender o homem como se estivesse de “fora” do mesmo sistema, e por isso, para ele a subjetividade é melhor entendida quando esta dialética está suspensa em virtude de uma compreensão mais potente da realidade, outorgada por uma fé maior do que as meras convenções. Daí, portanto, a necessidade do salto da fé.

1.2.1. Fé e Salto da Fé em Kierkegaard

Fé é o ato de crer ou aceitar algo intangível ou improvável, com ou sem evidência empírica. Salto da fé é o movimento para além do âmbito da racionalidade, e é uma ação volitiva da fé. Segundo Kierkegaard, o ato de ficar pensando pode voltar-se sobre si mesmo, e isso faz com que o ceticismo surja. E esse pensamento sobre si nunca realiza nada[5], Climacus, um dos vários pseudônimos de Kierkegaard já o afirma no Concluding Unscientific Postscript to Philosophical Crumbs:

Quando o pensamento se volta para si mesmo de maneira a pensar a si mesmo, um ceticismo surge, como nós sabemos. Como fazer parar este ceticismo, baseado como é em pensar em vez de estar a serviço de pensar algo, querendo egoisticamente pensar de si mesmo? (KIERKEGAARD, 2009, pp. 280–281).

Kierkegaard diz que o pensamento deve servir pensando alguma coisa. Ele quer que se pare de pensar por pensar, e argumenta que é o movimento que constitui um salto. Ele é contra as pessoas pensarem sobre religião apenas abstratamente, sem nunca fazer nada. Mas ele também é a favor de um impulso interno da fé em contrapartida às demonstrações externas de opiniões religiosas. Diagnostica que “onde o cristianismo quer ter interioridade, a cristandade mundana quer exterioridade, e onde o cristianismo quer exterioridade, a cristandade mundana quer interioridade[6]”. Interioridade é um conceito encontrado na estética hegeliana (Innigkeit_)_. Por salto da fé não se deve deduzir salto no escuro, como se sugeriria. Para Kierkegaard salto de fé era mais uma forma de dizer movimento, e não direção[7]. Portanto, quando ele se refere a salto, ele está se referindo a uma ação volitiva da fé, isto é, a fé enquanto motor da ação que põe o homem em uma nova realidade, mais próxima de Deus do que a anterior.

Para Kierkegaard a questão é: como lidar com o ceticismo, ou o historicismo, que, em de sua época, visava desacreditar da salvação eterna dada a mera contingência da história. Nosso abismo, afirma Kierkegaard, por maior que nos pareça, pode ser cruzado. Kierkegaard não está sendo morno nesse ponto. Para ele fé era uma paixão para ser vivida de corpo e alma, através de gestos significativos.

Por isso quando Kierkegaard fala do conflito interior pelo qual passaria Abraão, deve-se ter em mente que ele está falando de algo grandioso e que diante de tais eventos apenas um salto da fé é possível, pois nada mais pode ajudar. No entanto cabe dizer que a expressão tal como está aqui, “salto da fé” está para uma interpretação do pensamento de Kierkegaard, pois em todo o corpus kierkegaardiano[8] não achamos estas palavras juntas nenhuma vez.

A fé, por sua vez, não é uma decisão baseada na evidência empírica de que, por exemplo, certas crenças sobre Deus são verdadeiras ou que alguém possa ser digno de amor. Nenhuma evidência poderia ser suficiente para justificar completamente o tipo de compromisso total envolvido na verdadeira fé religiosa. A fé envolve tomar esta decisão de qualquer maneira, independente de ruídos na comunicação, ou interpretações diferentes das escrituras ou o que quer que seja, tamanha é a força da fé. No entanto, Kierkegaard diria que ter fé é ao mesmo tempo ter dúvida. Assim, por exemplo, para alguém realmente ter fé em Deus, nos milagres, nos santos, etc., teria também que ter a dúvida em suas crenças sobre essas coisas; a dúvida é a parte racional do pensamento de uma pessoa envolvida em pesar as evidências, sem a qual a fé não teria nenhuma substância real. Mais ainda: alguém que não percebe que a doutrina cristã é inerentemente cheia de dúvidas e que não pode haver nenhuma certeza objetiva sobre a sua verdade não tem fé: é meramente um crédulo. Cada um de nós tem que carregar este peso em nós mesmos: ter fé é aceitar, abraçar o paradoxo. Doutra maneira, como poderíamos entender as verdades paradoxais do cristianismo? A dúvida pode enfraquecer os alicerces da crença, mas é ela quem nos mostra o valor de acreditar em primeiro lugar. Mesmo que não houvesse dúvidas a respeito da existência história de cristo, ou dos milagres, ou dos santos, ainda precisaríamos da contraposição que a dúvida oferece à fé. Enfim, ele vai afirmar que a dúvida é conquistada pela fé, assim como é a fé que traz a dúvida para o mundo.

1.2.2. Subjetividade em Kierkegaard

Kierkegaard salienta a importância do eu, e a relação do eu com o mundo, como sendo baseada na autorreflexão e introspecção. Segundo um famoso manifesto por seu pseudônimo Johannes Climacus_:_ “Verdade é subjetividade” (KIERKEGAARD, 2009. P. 159). Com isso ele quer dizer que a verdade religiosa só pode ser alcançada através da subjetividade, pois que os métodos objetivos nunca poderão, entre outras coisas, lidar com o paradoxo da fé. A subjetividade neste caso é o método e o objetivo a se alcançar; é através dela que temos um vislumbre de nossa consciência eterna e de nosso papel no mundo. No entanto isso se aplica somente àquele indivíduo que já está inserido subjetivamente na introspecção, lutando com a compreensão do paradoxo. Surge então uma inversão de valores: se antes o homem olhava para as estrelas e através desta observação estabelecia verdades eternas, agora o homem vai olhar para si mesmo e, em humildade, aceitará que nada existe fora dele que não seja parte dele mesmo.

Climacus, que era um pseudônimo que não era cristão, justamente por achar esse caminho muito difícil, vai estabelecer uma distinção entre o que é objetivamente verdadeiro e o que é a relação subjetiva do indivíduo para com a verdade. Nessa comparação ele deixará claro que uma abordagem não excluirá a outra, mas que, se antes, apenas a objetividade tinha o status de verdade, agora a subjetividade também assim será. Isso quer dizer que a verdade deve ser experimentada pelo indivíduo singular, e que a mesma verdade da subjetividade quer se tornar inverdade quando quer se tornar objetiva. Para ele esta conversão é, portanto, impossível. A objetividade quantifica, categoriza e seleciona coisas ou conjunto de coisas, e estabelece relações que podem ser úteis em relação a outras coisas também objetivas. No entanto a verdade da introspecção é de um tipo completamente diferente. Suas proposições não são da mesma natureza que as da verdade objetiva, mas não deixam de serem verdades para o indivíduo. A verdade da introspecção é a verdade que acompanha o indivíduo por toda a existência. Sua verdade é inerente à existência individual e não pode ser medida em números ou estatísticas, a mera menção de medida afasta a verdade e a transforma apenas em característica acidental. Somente a fé pode abarcar, por sua vez, a totalidade de seu paradoxo. Este é o ponto que vai contra a pretensão de universalidade objetiva de Hegel, concluindo que cada indivíduo é singular e que por isso se sobrepõe ao objetivo, uma vez que este somente se refere a entidades abstratas. Subjetividade para Kierkegaard, enfim, é subjetividade existencial, uma “apropriação” da verdade existencial e que nos faz conectar com o sagrado das nossas vidas.

Vamos usar um exemplo que o próprio Climacus nos dá, de maneira a ver como ele delineia estas definições:

Vamos pegar o conhecimento de Deus como exemplo. Objetivamente, reflexão está em ser ele o verdadeiro Deus, subjetivamente no indivíduo se relacionando a algo de tal forma que sua relação é verdadeiramente uma relação para-com-Deus. De que lado pode agora a verdade ser achada? Ora, não estamos forçados neste ponto a voltar à mediação e dizer: não está em lugar nenhum, está na mediação? Bem colocado, se alguém pudesse explicar como um indivíduo faz parte de uma mediação, por que estar em mediação é estar pronto, existir é se tornar. (Tradução própria, como em KIERKEGAARD, 2009, p. 168, destaque à parte).

Por isso se pode afirmar que Kierkegaard quando discute subjetividade só a discute no que diz respeito a questões religiosas. Como já mencionado, ele argumenta que a dúvida é um elemento de fé e que é impossível para alguém ganhar alguma certeza objetiva sobre doutrinas religiosas, tais como a vida histórica de Cristo. O máximo que se poderia esperar seria a conclusão de que é provável que as doutrinas cristãs sejam verdadeiras, mas se uma pessoa tivesse que acreditar em tais doutrinas apenas na medida em que parece provável de ser verdade, ela não seria genuinamente religiosa. A fé consiste em uma relação subjetiva de compromisso absoluto com essas doutrinas. Este compromisso absoluto é o dever que temos para com Deus e seus mandamentos, pois por fé, em Kierkegaard, se entende sempre fé cristã.

Subjetividade aqui é, portanto, relacionada à introspecção, à “apropriação” de uma verdade objetiva. Com isso se explica, por exemplo, os simbolismos que a bíblia nos dá. Também significa que o filtro da subjetividade estará sempre entre o homem e o conhecimento de Deus, pois a fé é a única possibilidade que o homem tem de se relacionar diretamente com o divino. Ele era enfático em afirmar que não se tratava de dogmas, mas de vida. Assim, uma pessoa não pode simplesmente ter a verdade, mas deve estar na verdade, viver a verdade, à exemplo da vida de Cristo, que nunca escreveu nada de próprio punho, mas que ainda assim estabeleceu através de seus atos na terra toda uma genealogia de bondade. A verdade cristã, finalmente, não é para ser entendida meramente como uma série de doutrinas; para Kierkegaard ser um cristão no sentido que o Novo Testamento apresenta significa principalmente que o indivíduo se relacionará pessoalmente com Cristo por meio de uma decisão apaixonada e de coração, e que isso, por si só, é um salto da fé.

1.2.1.1 Moralidade em Kierkegaard

Ética (ou moralidade, para fins práticos ambos terão o mesmo significado neste trabalho) em Kierkegaard é uma esfera da existência, um modo de ser dos três estágios da vida, que se estabelece depois do estágio estético e que é abarcada pelo estágio religioso (em um modelo do tipo “camadas de cebola” onde um é englobado pelo outro). O estágio ético é a esfera do homem que ascendeu à consciência de seu papel no mundo; ele pode se casar ou não; ele pode estabelecer comitês pelo bom senso no uso de verbas públicas, ou não; mas ele vai à igreja todo domingo. Outro sinônimo deste modo de existência está definido na noção hegeliana de Sittlichkeit, os bons costumes habituais (Kierkegaard usa o termo “geral” em seus escritos).

Estas normas sociais comuns, que são a primeira concepção de ética, são o mais alto tribunal de assuntos humanos, e através de seus corredores muitos personagens ilustres já caminharam. É o caso de Agamenon que em um momento de extrema tortura psicológica decidiu sacrificar Ifigênia sua filha de modo a acalmar os Deuses e ser bem-sucedido em invadir Tróia, salvando por consequência milhares de gregos, o que o torna um herói trágico aos olhos de Kierkegaard (mas não um cavaleiro da fé, como se verificará mais adiante). A questão que Kierkegaard não deixa escapar é: seria assim se não fossem eles obrigados exteriormente? Se não houvesse uma guerra, no caso de Agamenon, se não houvesse milhares de pessoas dependendo das decisões dele, se os Deuses o deixassem escolher entre um cordeiro ou sua filha, teria sido assim? Como explicar um chamado da fé aos outros, ainda mais uma fé que existe em virtude do absurdo, como é o caso de Abraão? Nisso se distingue, segundo Kierkegaard, uma segunda acepção de ética, que está mais próxima de explicar o fenômeno da fé que acredita apesar do absurdo[9]. Essa segunda concepção de ética é o mote de toda a análise que Kierkegaard faz do comportamento de Abraão quando defrontado com o dever para com Deus.

Existiria um poder maior que as normas sociais? Kierkegaard argumenta que sim, e neste caso, é lícito se perguntar se haveria um conflito entre ambos: a ética da mentalidade geral e a ética que subentende o mesmo dever com o divino. O conflito talvez possa existir, sim, mas no coração do indivíduo. Abraão é o caso de um indivíduo que se tornou indivíduo singular através da superação da moralidade estabelecida, pois na primeira acepção de ética haverá primeiramente um rompimento com o primeiro estágio (estético), onde há a busca de sensação e repouso acrítico na imaginação, que leva ao tédio e por sua vez é trocada por um dever de comunicabilidade com os outros sobre a intenção de suas ações (ao menos para com sua família, como teria feito Abraão se fosse um indivíduo nos moldes hegelianos, porém acontece que Abraão rompeu com todas estas formas de moralidade), o que se caracteriza como o estágio intermediário, o Ético. Este estágio é um dos mais importantes para Kierkegaard, pois é nele que o indivíduo tem mais possibilidades de despertar para a verdade do eterno através da angústia. Também é nele que se estabelecem a maioria das relações mundanas. Finalmente, este estágio é do qual parte o estudo de Kierkegaard em sua busca da compreensão da grandeza de Abraão, visto que tal exemplo de patriarca já não era mais possível de ser encontrado na sua época. No entanto, do ponto de vista do último estágio, o estágio religioso, a linha que distingue bem e mal estão nubladas e não dependem mais das normas sociais, mas, sem dúvidas, apenas de Deus. E visto que Abraão visou obedecer apenas Deus quando partiu em sua jornada ao monte Morija, não houve conflito entre as duas formas de ética. E nisso residirá a qualidade de sua grandeza. Se antes ele era apenas um membro do geral, isto é, da moralidade das normas sociais comuns, agora ele teve que subir ao monte para imolar seu filho em segredo e absoluto dever com Deus, que lhe testava a fé. Isso o tornaria um cavaleiro da fé e o pai da fé.

Então por que é que o fez Abraão? Por amor de Deus, como, de maneira absolutamente idêntica, por amor de si mesmo. Por amor de Deus porque este exige essa prova de fé; e por amor de si mesmo para dar a prova. Esta conformidade encontra o seu termo adequado na frase que sempre tem designado esta situação: é uma prova, uma tentação. Mas que quer dizer uma tentação? Geralmente pretende desviar o homem do dever; mas aqui a tentação é a moral, ciosa de impedir Abraão de realizar a vontade de Deus. Que é, então, o dever? A expressão da vontade de Deus. (KIERKEGAARD, 1979, p. 245).

Abraão realizou a vontade de Deus através de um expediente que seria chamado por Kierkegaard de “suspensão teleológica da moralidade”, ou seja, Abraão escolhe outro plano de ação tendo em vista seu dever de obedecer à vontade de Deus, abandonando os preceitos da ética do geral, desenvolvendo sua individualidade e enfrentando o paradoxo. Abraão reconhece o dever de algo maior do que seu dever social de não matar uma pessoa inocente e que ainda por cima é seu filho tão querido, porém isso e a exigência de comunicabilidade e procedimentos distintos de decisão também pode ser suspensa por decreto divino. Isto torna um caso como o de Abraão muito difícil de julgar, já que não existe nenhum recurso que guie a razão pública para decidir se ele está legitimamente obedecendo a uma ordem de Deus ou se ele é um candidato a assassino. Uma vez que a razão pública não pode decidir a questão por nós, ele nos diz que temos de decidir por nós mesmos como uma questão de fé religiosa.

O paradoxo está inserido exatamente onde estávamos acostumados a ter certeza, daí a dificuldade de se fazer a escolha. Kierkegaard dirá que apenas a fé é capaz de distinguir qual o melhor caminho a seguir, e isso quer dizer que a razão pública se guiará principalmente pela razão e deliberação, ao passo que as decisões guiadas pela fé, só podem contar com a introspecção e confiança em seu próprio discernimento do que é certo e errado. Se por um lado a razão pública mantém a vantagem de poder avaliar com o tempo os resultados das ações, e se foram de fato acertadas, as decisões pela fé são em geral imediatas e urgentes e não contam com nada além da intuição do que é eterno.

Interessante notar que teleologia aqui também se assemelha ao conceito hegeliano de teleologia. Segundo o dicionário Houaiss:

Teoria característica do hegelianismo e seus epígonos, segundo a qual o processo histórico da humanidade — assim como o movimento de cada realidade particular — é explicável como um trajeto em direção a uma finalidade que, em última instância, é a realização plena e exequível do espírito humano (Houaiss, edição eletrônica, 2009).

Kierkegaard irá com todas as suas forças de encontro a essa conclusão: que o homem seja sempre um projeto a ser concluído, que nele se encontra uma razão que nunca se exaure, ancorada em uma fé que subsiste até mesmo nos mais racionais dos esquemas, e que, à maneira de Sócrates, pretenda colocar o indivíduo no centro da existência, ignorando qualquer pretensão de essência determinada, estes argumentos serão apenas algumas das armas de que ele se valerá neste embate.

[1]Leonard Cohen, “Songs from a room” 1969. Columbia Records.

[2] Cf. STORM, D. Anthony. D. Anthony Storm’s Commentary on Kierkegaard.

[3] Cf. MCDONALD, William, “Søren Kierkegaard”, the Stanford Encyclopedia of Philosophy. Disponível em http://plato.stanford.edu/archives/win2014/entries/kierkegaard/.

[4]Kierkegaard, Søren Aabye. “The Book of the Judge” Søren Kierkegaard’s Journals & Papers.

[5]KIERKEGAARD, Søren Aabye. Concluding Unscientific postscript to The philosophical crumbs. Tradução e edição HANNAY, Alastair. Editora Cambridge University Press 2009, p. 280–281.

[6]KIERKEGAARD, Søren, A. Las Obras Del Amor, Meditaciones cristianas en forma de discursos. Traduzido por Rivero, Demétrio G. Ed. Sigame Salamanca, 2006. P. 181.

[7]Cf. GOUVEA, Ricardo Quadros, 2000. Paixão pelo paradoxo p. 131.

[8] Cf. HANNAY, Alistair, Introdução p. XXVII. Concluding unscientific postscript to The philosophical crumbs. Cambridge University Press, 2009.

[9]Cf. KIERKEGAARD, 1979. 2º cap.: “Há uma suspensão teleológica da moralidade?” P. 141.

CAPÍTULO II

1. A Realidade da Fé

O relato do Gênesis é o relato de uma grande provação pela qual passa Abraão; de sua corajosa atitude e de sua silenciosa angústia. Sua situação era instável a ponto de estar em risco de ser destituído do lugar honroso na história que acabaria por conquistar. Diriam então à vista do monte Morija: “veja, foi ali que Abraão duvidou!”, não sem algum assombro. Porém o que lemos no fim do relato é, pelo contrário, uma bela declaração de aliança renovada entre Deus e o povo escolhido, onde Deus diz que abençoará todas as gerações que viriam dele através dos séculos.

Kierkegaard vai usar do relato de Gênesis para nos mostrar quão longe a fé de um homem pode leva-lo. Também servirá como breve estudo das dificuldades do espírito no trajeto da existência quando este espírito resolve ser fiel a si mesmo e seguir seus instintos mais nobres, doutra maneira, aceitando o paradoxo, tomando para si o dever, e enfrentando a angústia com resignação. Finalmente, podemos entender Kierkegaard como o arauto da grande verdade da fé, uma fé que raramente se encontra hoje em dia e que, de fato, pode mover montanhas:

A história de Abraão comporta uma suspensão teleológica da moral. Como Indivíduo, superou o geral. Tal é o paradoxo que se recusa à mediação [da dialética]. Não se pode explicar nem como aí entra nem como aí permanece. Se não é este o caso de Abraão, nem sequer este alcança ser herói trágico, é um assassino (…). A fé é um milagre; no entanto ninguém dela está excluído; porque é na paixão que toda a vida humana encontra a sua unidade, e a fé é uma paixão. (KIERKEGAARD, 1979, p. 252).

O entendimento comum diz que fé é uma força espiritual que nos faz acreditar e que independe de religião. Que a fé parece ser um termo pré-religioso, mas, aqui, não é este o caso. Quando se fala em fé se fala especificamente em fé cristã — ou de outra maneira, qualquer outro objeto de fé que não seja cristo é idolatria, tratando-se, portanto, a fé como uma invenção unilateral dos homens para adorar Deus. Dito isso, se começa a perguntar do que esta fé, afinal, é capaz. Ou seria melhor perguntar do que ela não é capaz. Thoreau, pensador norte-americano que era contemporâneo de Kierkegaard, disse: “Embora eu não acredite que uma planta vai brotar onde não há semente plantada, tenho grande fé na semente. Convença-me de que você tem uma semente lá, e eu estou preparado para esperar maravilhas.[1]”.

Quão maravilhosa foi a fé de Abraão, diria Kierkegaard. Sua retitude, seu desprendimento, sua moral. Sua fé é o maior exemplo que temos à mão para definir o status de paixão da fé, pois, se paixão é a qualidade original do homem, se este pathos é a chave que abre o entendimento do homem pelo homem, então a fé é o maior fenômeno da qual esta paixão é capaz, e Abraão, quando renunciou à ética comum dos homens, quando decidiu enfrentar o medo causado pelo abandono e solidão, se tornou o patriarca desta mesma fé.

No final da obra ele será condescendente até mesmo com aqueles que não conseguem alcançar a fé, pois mesmo para eles. pois:

(…) a vida comporta suficientes tarefas, e se as aborda com sincero amor, a sua vida não será perdida, mesmo que não possa ser comparada à existência dos que aprenderam e alcançaram o mais alto (KIERKEGAARD, 1979. p. 185).

1.1. Acreditar em virtude do Absurdo

De várias maneiras se podem abordar o paradoxal na obra de Kierkegaard — pois ele usa algumas definições que variam sutilmente dependendo de qual o contexto, mas é exatamente o contrário disso que podemos afirmar em relação à maneira com que se pode abordar a fé em sua obra. Fé para Kierkegaard era o único guia confiável para se atravessar a existência com firmeza e constância. E é só através da fé que voltaremos ao equilíbrio; equilíbrio ameaçado pelo racionalismo exacerbado das elites intelectuais da sua época, que tornaram o desequilíbrio norma padrão.

Kierkegaard tinha uma predileção especial pelo paradoxo, seja por que os ensinamentos de Cristo são repletos de sabedoria que parece paradoxal, seja por que na linguagem da qual ele usa para abarcar a fé este seja o expediente mais útil. Talvez até mesmo se possa afirmar que não haveria maneira alguma de transmitir os ensinamentos de Cristo sem paradoxos; nunca poderiam ter sido enunciados de outra maneira (que não paradoxal), pois sua mensagem atemporal extrapola os limites da linguagem como tal e, por extensão, da racionalidade humana.

Pode-se começar a entender que papel o paradoxal tem em Kierkegaard se nos perguntarmos primeiro que papel ele tem no Novo Testamento. Eis que logo no começo do livro Johannes nos lembra de que ele aprendeu dos antigos

Ninguém hoje se detém na fé — vai-se mais longe. Passarei, sem dúvida, por néscio se me ocorrer perguntar para onde por tal rumo se caminha (…). Não sucedia assim antigamente; era então a fé um compromisso aceite para a vida inteira; porque, pensava-se, a aptidão para crer não se adquire em poucos dias, ou escassas semanas. (KIERKEGAARD, 1979, p.110).

Outro apelo do paradoxo nos escritos de Kierkegaard está na função de criar uma muito bem-vinda mudança de perspectiva desta “Religiosidade A”, idealista e imanentista, e cuja alternativa foi por isso chamada por Climacus de “Religiosidade B” (KIERKEGAARD, 2009, pp. 506–507), ou “Cristianismo Paradoxal”, onde a principal característica dos ensinamentos e a ênfase da fé estão nos paradoxos. Isso tem por consequência o efeito de desacreditar a lógica dialética hegeliana donde já não havia mais lugar para os paradoxos, uma séria consequência com a qual Kierkegaard se embateria em todas as suas obras heteronômicas com o fim de “salvar” os evangelhos deste esvaziamento de conceito que Hegel promovera.

Quando Kierkegaard usa da expressão (e ele a usa muitas vezes, dez vezes pelo menos na edição “Os Pensadores” de 1979) acreditar [ou ter fé] em virtude do absurdo, ele quer dizer com isso simplesmente que é em virtude de parecer absurdo para aquele que não tem fé, e que, portanto a fé inverte os valores e a perspectiva de quem vê de fora, porém não só isso, pois:

A dialética da fé é a mais sutil e notável de todas; tem uma sublimidade de que posso ter uma ideia, mas não mais que isso. (…) Tal é o cume onde está Abraão. O último estádio de que ele se distancia é a resignação infinita. Vai mais longe realmente e chega até a fé — porque, na verdade, todas as caricaturas da fé, essa lamentável preguiça dos lábios que dizem: nada urge, inútil é lançar-nos ao caminho antes do tempo, essa mesquinha esperança que calcula: pode saber-se o que sucederá? … Talvez que…, todas essas paródias da fé fazem parte dos mistérios da vida e já a infinita resignação as cobriu com o seu infinito desprezo. (KIERKEGAARD, 1979, pp. 128–129).

Aqui Kierkegaard faz jus ao papel de pai do existencialismo quando afirma que devemos nos lançar na vida, por que de nada adiantam conjecturas vazias ou cálculos exagerados. Na mesma página ele ainda vai dizer que nunca encontrou um cavaleiro da fé, mas que se houvesse uma oportunidade, em contraste com aqueles que buscam conhecer o mundo e suas maravilhas, ele não mediria esforços para encontrar tal homem.

Com a expressão “Fé em virtude do absurdo”, Kierkegaard passa a considerar o paradoxo e o absurdo como aquilo que é essencialmente cristão. Neste sentido o homem só pode se aproximar de Deus a partir de uma firme aceitação do paradoxo como parte da própria ontologia do indivíduo perante a verdade eterna. Este é o significado de fé para Kierkegaard, e deveria assim ser para todo cristão. Mais além ele irá enfatizar que a marca do cristianismo é o paradoxo, e que Deus representa o paradoxo absoluto:

A resignação não implica a fé; porque o que eu adquiro no seio da resignação é a minha consciência eterna; e é isso um movimento estritamente filosófico que tenho a coragem de efetuar quando é requerido e que posso infligir a mim próprio; porque, de cada vez que uma circunstância finita me vai ultrapassar, imponho a mim próprio o jejum até o instante de realizar o movimento; porque a consciência da minha eternidade é o meu amor para com Deus e este amor é tudo para mim. Para alguém se resignar, não é indispensável a fé, mas ela é precisa [necessária] para obter a mínima coisa para além da minha consciência eterna: é esse o paradoxo. (KIERKEGAARD, 1979, p.118).

O homem tem em si a semente do infinito. Sua escolha é (dever) de aceitar esta condição e prezar por ela. Aqui Kierkegaard vai dizer que a resignação infinita é infinita a partir da consciência que se tem de si mesmo, mas que essa mesma consciência não é suficiente para elevar o homem ao estágio mais avançado da existência, daí a necessidade do salto, da ruptura, pois não há harmonia de opostos aqui. Doutra maneira ele está condenado a angustiar-se até o fim, seja por querer ser a si mesmo ou querer ser outro. Mesmo a relação com Deus está sob o risco de perder-se, pois o homem tem de encontrar em si a força que o libere. Conclui-se daí que a fé é o fator determinante da salvação; que a fé é parte indissociável do paradoxo e que ela vai inverter os valores estabelecidos: o que antes era interior se torna exterior, o que era exterior fica sendo interior. (KIERKEGAARD, 1979, p.254).

1.1.1. Os Paradoxos da Fé em Kierkegaard

Uma das definições centrais de paradoxo na obra analisada é aquela que se refere à existência como paradoxo:

A fé não constitui, portanto, um impulso de ordem estética; é de outra ordem muito mais elevada, justamente porque pressupõe a resignação. Não é o instinto imediato do coração, mas o paradoxo da vida. (KIERKEGAARD, 1979, p. 136).

Aqui ele está rechaçando a noção hegeliana de fé que considerava a fé uma espécie de intuição e, portanto, um instinto, menor na concepção de homem e menos importante que a razão (ver mais adiante). Kierkegaard vai de encontro com esta definição invertendo os valores, e colocando a fé como a mais importante capacidade que o homem tem para lidar com a vida e sua inerente inquietação.

Para Kierkegaard a fé é um impulso que nasce do espírito temporal em relação com a verdade atemporal. Ela se expressa pela resignação, pois, quanto maior é a fé, maior é a aceitação. Importante ressaltar que para Kierkegaard a verdade eterna nada tem em si de paradoxal, mas que assim ela se torna quando relacionada à pessoa existente no mundo temporal. Daí a concepção ontológica de paradoxo (primeira definição), pois ela é o próprio meio de relacionamento que temos com a verdade eterna.

A segunda forma que o paradoxo assume nos escritos kierkegaardianos é o de limite da compreensão humana. Isso significa que uma compreensão eficiente deve abranger termos que não estão implícitos no sistema do qual esta mesma compreensão se origina. É o significado mais comum que Kierkegaard utiliza quando fala de paradoxo e de fé em relação ao sistema hegeliano, isto é, os princípios fundamentais do sistema são estabelecidos à priori pela fé e não podem ser constatados sob o risco de reduzir-se a um raciocínio circular.

Isso condiz perfeitamente com a definição etimológica de paradoxo, isto é, de defeito, de bizarro, “de falha na matrix[2]”. Mas se vai mais além por que aqui Kierkegaard não apenas faz uso do paradoxo para negar o sistema hegeliano, ele o usa para desconstruí-lo aos poucos, distanciando-se passo-a-passo de qualquer pretensão de especulação sistemática filosófica. Com isso ele afirma que quando o paradoxo (segunda definição) está na própria base deste sistema, qualquer afirmação que tenha a pretensão de ser “de fora”, “objetiva” se torna uma aporia.

Agora podemos no debruçar mais demoradamente nos aspectos da filosofia hegeliana que foram alvo da crítica de Kierkegaard em seus trabalhos heteronômicos — motivados pela insistência de Hegel em ignorar a função do paradoxo inerente da fé como componente importante da mediação justamente por torna-la impossível. Primeiramente: as ideias de que a filosofia possa começar do Nada ou sem nenhuma forma de pressuposição, e, finalmente, de que uma filosofia baseada na lógica tenha como componente uma mediação que permite o movimento da consciência a uma compreensão absoluta e livre de impedimentos.

Para Hegel a noção de um saber intuitivo e imediato como para ele era a fé era problemático, pois vinha de encontro com a mediação como geradora da autoconsciência transformadora (Deus). Para Kierkegaard, no entanto, este conceito de fé era equivocado por que ignorava a cumplicidade necessária para alguém ser digno desta fé. Cumplicidade esta que significa nada menos do que viver em dever para com Deus a ponto de sacrificar o que mais se ama e correr o risco de ser chamado de assassino. Doutro modo:

A nova filosofia [hegelianismo] permitiu-se substituir, pura e simplesmente, o imediato pela “fé”. Quando se age desta maneira é ridículo negar que a fé existiu sempre. (…) A fé é precedida de um movimento de infinito; é somente então que ela aparece, nec inopinate, em virtude do absurdo. Posso compreendê-lo, sem por isso pretender que possuo a fé. Se ela não é outra coisa senão o que humanas, ainda que hoje seja desdenhada; mas, antes de tudo, é necessário tê-la realizado, é necessário primeiro que o Indivíduo se haja esgotado na infinitude, para chegar então ao ponto em que a fé pode surgir. (KIERKEGAARD, 1979, PP. 254–255)

A fé é: aquilo que só surge em virtude do absurdo — daí sua superioridade ao resto, por assim dizer. Nisto residirá a especialidade do cristão, pois somente ele tem a capacidade de se desesperar, e, portanto, de se salvar de sua condição pecaminosa.

2. Elogio de Abraão

Para Kierkegaard a expressão de Deus acontece de forma misteriosa, assim como é misterioso o tema religioso da Encarnação, da Trindade, etc.. É natural, portanto, que para ele a fé seja uma forma única que todos temos de expressar este amor a Deus e também de ter acesso a Ele. A obra Temor e Tremor é um tratado sobre as difíceis etapas que um indivíduo tem que enfrentar para se tornar verdadeiro a si mesmo.

Kierkegaard começa com uma citação de Hamann, filósofo romântico alemão: “O que Tarquínio, o Soberbo pretendia designar [dizer, demonstrar] com as papoulas do seu jardim, compreendeu-o o filho, não o mensageiro” (KIERKEGAARD, 1979, p. 109). Tarquínio, o Soberbo foi o último rei de Roma e reinou de 535 A.C. até 509 A.C. Segundo a história quando o filho de Tarquínio, o Soberbo conseguiu abrir caminho até o poder e tinha uma cidade sobre seu controle, enviou um mensageiro para seu pai perguntando o que deveria fazer com a cidade. Tarquínio, não confiando no mensageiro, não deu nenhuma resposta, mas levou-o para o jardim, onde com a bengala cortou as flores das papoulas mais altas. O filho entendeu a partir disso que ele deve eliminar os principais homens da cidade.

O conteúdo manifesto do ato de cortar as papoulas, dito de outra forma, a derrubada de seus inimigos, não é de relevância aqui. A ênfase de Kierkegaard parece ser que um ato pode ter um significado completamente diferente para alguém que está a par de uma perspectiva mais esclarecida. O filho entendeu por causa de sua relação especial com seu pai. Da mesma forma, o homem de fé vai ter os mesmos conhecimentos que um homem normal vai ter, mas ele vai ver algo mais por causa de sua fé. Para um cidadão “normal”, Abraão tentou assassinato. Através dos olhos da fé, ele está obedecendo a Deus.

As obras de Kierkegaard assinadas com pseudônimo começam com um prólogo. Temor e Tremor começa com um prefácio de Johannes de Silentio.

Dito de outro modo, pensa-se que existir como Indivíduo é a mais fácil das coisas e por conseguinte interessa constranger os homens a alcançarem o geral. Não partilho nem deste receio, nem desta opinião e pelo mesmo motivo. Quando se sabe, por experiência, que não há nada de mais terrível que existir na qualidade de Indivíduo, não se deve temer afirmar que não há nada de maior; mas também é-se obrigado a exprimi-lo de maneira a não fazer dessas palavras uma ratoeira para o extraviado que é necessário, antes de mais, reconduzir ao geral, ainda quando as suas palavras não deixem lugar ao heroísmo. Se não se ousa citar semelhantes textos, também se não deve ter o atrevimento de mencionar Abraão; e se pensamos que é relativamente fácil existir como Indivíduo, mostramos indiretamente uma inquietante indulgência para conosco; porque se realmente se tem respeito por si próprio e cuidado com a alma, está-se seguro de que aquele que vive sob o seu próprio domínio, sozinho no seio do mundo, leva uma vida mais austera e mais isolada que a de uma jovem no seu quarto. (…) O herói trágico renuncia a si mesmo para exprimir o geral; o Cavaleiro da Fé renuncia ao geral para se converter em Indivíduo. (KIERKEGAARD, 1979, p.174).

Kierkegaard tomará emprestados alguns exemplos dos clássicos. Assim ele vai se referir ao mito grego do sacrifício de Ifigênia para nos lembrar de que com resignação Agamenon alcançaria o epíteto de herói trágico, encontrando repouso no geral; porém para um homem da estatura de Abraão, para se tornar Indivíduo o geral era empecilho. Assim: Agamenon renunciou ao seu amor paternal e o dever de cuidar de sua filha de modo a exprimir a vontade geral de acalmar os ânimos do deuses, porém Abraão foi infinitamente maior pois renunciou a si mesmo e ao geral, e por isso mesmo nunca mais voltou ao geral, se transformando em indivíduo.

Nisso fica subentendido a importância da escolha na existência, pois, se muitas vezes ficamos presos entre alternativas, outras vezes sequer sabemos que estamos escolhendo, criando escolhas de escolhas. A importância da subjetividade e seu papel nuclear na escolha do indivíduo são declarados por Kierkegaard quando, analisando o recolhimento e a profunda introspecção de Abraão diante da escolha que teria de fazer declara que: “só o indivíduo pode decidir se está em crise ou se é um cavaleiro da fé” (KIERKEGAARD, 1979, p. 157). Mais uma vez, Kierkegaard deixa ao cargo do leitor decidir qual a culpa de Abraão nos atos que precederam a ordem de Deus de imolar seu filho.

Dando continuidade à apresentação da obra:

O presente autor de nenhum modo é um filósofo. Não compreendeu nenhum sistema da filosofia se é que algum existe ou esteja concluso. O seu débil cérebro assusta-se já bastante ao pensar na prodigiosa inteligência que é necessária a cada um, sobretudo hoje, quando toda a gente estadeia tão prodigiosos pensamentos! Embora se possa formular em conceito toda a substância da fé, não resulta daí que se alcance a fé, como se a penetrássemos ou ela se houvesse introduzido dentro de nós. O presente autor de nenhum modo é filósofo. É sim, poetice et eleganter, um amador que nem escreve sistema nem promessas de sistema; não caiu em tal excesso nem a ele se consagrou. Para ele, escrever é um luxo suscetível de ganhar tanto mais significação e evidência quanto menos leitores e compradores tiver para as suas obras. (KIERKEGAARD, 1979, p.110).

É no prólogo que o autor anuncia que não é filósofo no sentido de criador de sistemas. O “sistema” é uma referência ao sistema de filosofia hegeliano, o qual buscou explicar todos os fenômenos possíveis de serem explicados, incluindo os fenômenos religiosos. Ele pensou que tal tarefa era logicamente impossível, uma vez que o filósofo vive dentro do sistema que ele está tentando avaliar; ainda que se julgue estar de fora.

Enquanto Kierkegaard considera a si mesmo como um poeta, em algum ponto ele dirá “Mas eu paro; eu não sou um poeta; deixo-me guiar simplesmente pela dialética.” (KIERKEGAARD, 1979, p. 164). Isso pode ser sua maneira de dizer que o paradoxo da fé é impossível de ser resolvido por meio da dialética hegeliana. No entanto às vezes o pseudônimo de Kierkegaard alternativamente clama ser um dialético (filósofo) e um poeta.

O poeta não pode cumprir aquilo que o herói realiza: só lhe resta admirá-lo, amá-lo e rejubilar com ele. Entretanto não é menos favorecido do que este porque o herói é, por assim dizer, o melhor de si mesmo, aquele de quem está enamorado, feliz por não ser herói, para que o seu amor seja feito de admiração. O poeta é o gênio da recordação. (KIERKEGAARD, 1979, p. 117).

Em relação à declaração de que para ele é um luxo “quanto menos leitores e compradores tiver sua obra”, é verdade que Kierkegaard não vendeu bem. De fato, seus livros foram publicados a custo próprio, o Post Scriptum na época vendeu menos de 200 cópias, e só em 1849 outro livro anterior seu, Enten/Eller (Ou isso ou aquilo: fragmentos da vida), seria publicado em nova edição[3].

Do que se tratará o Elogio de Abraão? Como Abraão se tornou o pai da fé? Kierkegaard diz:

Não! Nada será perdido dos que foram grandes; cada um a seu modo e segundo a grandeza do objeto que amou. Porque aquele que se amou a si próprio foi grande pela sua pessoa; quem amou a outrem foi grande dando-se; mas o que amou a Deus foi o maior de todos.(…) “Um engrandeceu-se na esperança de atingir o possível; um outro na esperança das coisas eternas — mas aquele que quis alcançar o impossível foi, de todos, o maior. Os grandes homens hão-de sobreviver na memória dos vindouros, mas cada um deles foi grande pela importância do que combateu. Porque aquele que lutou contra o mundo, foi grande triunfando do mundo, o que combateu consigo próprio foi grande pela vitória que alcançou sobre si — mas aquele que lutou contra Deus foi o maior de todos (KIERKEGAARD, 1979, pp. 117–118).

Mais uma vez vemos aqui a obra filosófica interpelando a realidade vivida. Kierkegaard também enfrentaria grande parcela de sofrimento quando decidira romper o noivado, abandonando o conforto de uma vida próspera em sociedade, escolhendo a solidão como companhia e sofrendo o julgamento tenaz da sociedade em que vivia, e pode-se dizer que esta foi a sua luta com o anjo.

2.1. Subida ao Monte Morija

Para Kierkegaard o trabalho filosófico era o trabalho de aliviar aquilo que oprime nosso coração. Pelo menos assim se presume, pois a Atmosfera, que se segue ao prólogo, na edição em inglês tem o nome de Expectoração Preliminar, isto é, segundo o dicionário Houaiss, do latim “expectoro”, “lançar fora do peito, isto é, do coração”, e começa assim:

Era uma vez um homem que tinha ouvido, na sua infância, a formosa história de Abraão, que, posto à prova por Deus, vencida a tentação sem perder a fé, recebia, contra toda a expectativa, o seu filho pela segunda vez. (KIERKEGAARD, 1979, p. 113).

E termina assim: “Este homem não era um sábio exegeta, pois nem sequer conhecia o hebreu. Se o tivesse podido ler, então teria, sem dúvida, compreendido facilmente a história de Abraão.” Sabe-se que Kierkegaard sabia Hebraico e que ele tinha alguns livros nesta língua em sua biblioteca particular. Neste caso quem não poderia saber hebraico era Johannes de Silentio.

A Atmosfera consiste de quatro diferentes e fantasiosas versões da história da subida de Abraão ao monte Morija para sacrificar seu filho. Cada uma delas enfatiza um ponto de vista diferente que traz luz ao texto. Mas o primeiro exórdio começa contando como um homem ouviu a história de Abraão quando criança, e quão frequentemente retornaria à história como homem já crescido. Isto parece guiar toda a obra, sendo que a criança (o leitor) precisa desenvolver-se na estrutura mental religiosa que trará luz ao relato de Gênesis.

Na primeira abordagem da história do Gênesis, Abraão fala com seu filho, Isaac:

Estúpido! Supões que sou teu pai? Sou um idólatra! Crês que obedeço às ordens de Deus? Faço o que me apetece! Então Isaac fremente e com grande angústia, gritou: Deus do Céu? Tem piedade de mim! Deus de Abraão, tem piedade de mim, sê meu pai, porque já não tenho outro na Terra! Mas Abraão ciciava: Deus do Céu, dou-te graças. Vale mais que me julgue um monstro do que perca a fé em ti. (KIERKEGAARD, 1979, p. 114).

Alguns intérpretes veem aqui uma aparente relação com a vida do autor; quando Kierkegaard e Regine Olsen eram noivos. Quando Kierkegaard se determinou inadequado para o papel de marido, ele passou a convencer Regine que era um canalha, a fim de que ela não entrasse em um relacionamento duradouro com ele. Se esta interpretação estiver correta, ele consideraria a si mesmo como Abraão e ela como Isaac. Ele usou deste expediente para romper com seu relacionamento: pintando-se com pinceladas negras, tudo de forma a preservá-la. Isto se torna mais evidente no final da obra “Diário de um sedutor”.

Na segunda abordagem da história do Gênesis, Abraão sacrifica o cordeiro, e assim preserva Isaac.

Daquele dia em diante, Abraão ficou velho; ele não podia se esquecer que Deus tinha ordenado ele a fazer aquilo com Isaac. Isaac resplandecia como sempre, mas os olhos de Abraão tinham se escurecido, e ele não via mais alegria. (KIERKEGAARD, 1979, p. 114).

Na terceira abordagem, Abraão vai sozinho, se arremessa no chão, implorando a Deus que perdoe ele por ter contemplado sacrificar Isaac, e por ter esquecido sua conduta ética. Na abordagem quatro Abraão não consegue se trazer para sacrificar Isaac e ambos voltam para casa juntos. Isaac perde a fé por causa disso. A Atmosfera fecha com Johannes dizendo, “Então, não há ninguém com a estatura de Abraão? Ninguém capaz de o compreender? (sic)” (KIERKEGAARD, 1979, p. 115).

No final de cada abordagem do relato da Bíblia, Kierkegaard adiciona um pequeno adendo sobre uma criança, presumivelmente a criança que Johannes fora quando ele ouviu a história pela primeira vez. O primeiro adendo diz:

Quando chega o tempo do desmame, a mãe enegrece o seio, porque manter o seu atrativo será prejudicial ao filho que o deve abandonar. Assim ele acredita que a mãe mudou, embora o coração dela continue firme e o olhar conserve a mesma ternura e amor. Feliz aquele que não tenha de recorrer a meios ainda mais terríveis para desmamar o seu filho! (KIERKEGAARD, 1979, p. 114).

Assim como Johannes é a criança que primeiro ouviu a história de Abraão, talvez Kierkegaard seja ele mesmo como a mãe cujo peito deve enegrecer, para que assim o leitor possa “desmamar”. Uma tarefa dura, mas necessária no forjar da individualidade. Para isso ele terá de ser o poeta que é como que guiado dialeticamente pela verdade (KIERKEGAARD, 1979, p. 164).

2.2. O Cavaleiro da Fé

Primeiro, Kierkegaard, em um argumento de redução ao absurdo, pergunta como um assassino pode ser reverenciado como o Pai da fé, referenciando-se diretamente à Hegel:

Como explicar esta contradição do nosso pregador? [Hegel] Poder-se-á dizer que Abraão adquiriu por prescrição o título de grande homem, de tal modo que um ato é nobre quando por ele praticado e revoltante se for praticado por um outro? Neste caso não tenho desejo de subscrever tão absurdo elogio. (…) Sob o ponto de vista moral, a conduta de Abraão exprime-se dizendo que quis matar Isaac e, sob o ponto de vista religioso, que pretendeu sacrificá-lo. Nesta contradição reside a angústia que nos conduz à insônia e sem a qual, entretanto, Abraão não é o homem que é. (KIERKEGAARD, 1979, p. 125).

Kierkegaard nos oferece então o conceito de Cavaleiro da Fé. Ele usa de analogia entre dois exemplos de cavaleiros, Cavaleiro da Fé e o Cavaleiro da Resignação Infinita, para nos demonstrar a superioridade do primeiro. No fim entendemos que o cavaleiro da resignação infinita é a designação que ele daria a si mesmo e a todos os filósofos, reservando a designação de cavaleiro da fé apenas para pouquíssimos homens na história, entre eles, Abraão.

Resignação, de acordo com a definição kierkegaardiana, é “um ato de vontade, não abdicação desesperançada”. O Cavaleiro da Resignação Infinita não é um covarde, mas um homem comprometido por um ato volitivo a agir ou aderir algum código ético. Um exemplo seria o de um comerciante que não se deixa corromper e sempre oferece preços justos aos seus fregueses. Ele tem um código de conduta, embora careça de fé. Sua resignação infinita lhe permite viver com a boa consciência de que fez o melhor que poderia ser feito em determinada situação. Porém, a resignação infinita é inferior à fé, pois a resignação infinita não é capaz de alcançar o estágio mais avançado da existência, a saber, o estágio religioso. O Cavaleiro da Fé é um homem que também é bravo, mas de uma maneira diferente. Ele adere pela fé a um Telos (objetivo, meta) impossível (absurdo aos olhos de quem não crê). Abraão não é apenas um homem de resignação (determinação), mas é o Pai da fé, o supremo exemplo da fé contra e apesar do absurdo. Deus lhe prometeu um filho. Ele teve que esperar por décadas para aquele filho (Isaac) nascer, ainda que em virtude da dúvida de Sara. Então Deus ordena que Abraão sacrifique seu tão aguardado filho. De alguma maneira, Abraão teve a fé de obedecer a Deus mais uma vez, ignorando qualquer tipo de especulação ulterior.

Esta ideia seria inconcebível se, nos nossos dias, não se procurasse por tantas maneiras o insinuar-se sub-repticiamente nas coisas grandiosas. Um cavaleiro da fé não pode de maneira alguma socorrer um outro. Ou o Indivíduo se transforma em cavaleiro da fé, carregando ele mesmo o paradoxo, ou nunca chega realmente a sê-lo. Nessas regiões, não se pode pensar em ir acompanhado. (KIERKEGARD, 1979, p.152).

O paradoxo aqui é a “cruz”, ou o fardo do cristão, que precisa crer antes mesmo de ver, o que parece absurdo. Também, este é o paradoxo da fé tal qual é ilustrado naquele ensinamento de Jesus: “aqueles que quiserem salvar suas vidas a perderão, mas aqueles que a perderem por minha causa, serão salvos” (Lucas 9:24). E a solidão que fica subentendida neste parágrafo é a mesma solidão do homem que caminha em direção ao seu destino. É a solidão de Abraão por três dias em silencio em direção ao monte Morija, e é a solidão de Jesus no jardim das oliveiras quando ora para que lhe afastem o cálice se isso for possível.

O dever com Deus nasce, portanto, de uma vontade livre de egoísmo. Kierkegaard se interessará profundamente por este tema do dever e pelo paradoxo que nele se insere. E irá além. Dirá que este evangelho em particular nos dá a chave que abre nosso coração para nossa verdadeira condição no mundo. Ele usa o exemplo do homem que se casa e exige que a esposa abandone os pais, mas que não pode esperar que isso seja demonstração de amor, pois o amor manifestado pelos pais iria também retornar a ele (KIERKEGAARD, 1979, pp. 153–154). Então ele pergunta: o que Jesus queria dizer quando disse para abandonarmos tudo se quisermos ser seus discípulos?

Pelo contrário, se considero a tarefa como um paradoxo, compreendo-a, como se pode compreender um paradoxo. O dever absoluto pode então levar à realização do que a moral proibiria, mas de forma alguma pode incitar o cavaleiro da fé a deixar de amar. É o que mostra Abraão. (KIERKEGAARD, 1979, p.154).

Assim, ele estabelece limites para a concepção do Cavaleiro da Fé. Se, ora, ele tem a coragem de avançar para a outra margem e enfrentar a incerteza causada pelo paradoxo, uma coisa que ele nunca deixará de fazer é amar a Deus, e isso, dito em retrospecto é coisa que apenas uma fé verdadeira pode justificar.

2.3. A Maior Paixão do Homem

Kierkegaard diz que todos têm uma escolha na vida e liberdade consiste usar aquela escolha, pois que escolher já é uma escolha, ainda que muitas vezes seja feita inconscientemente. Esta escolha é o núcleo de nossa existência e é ela mesma livre de determinações de qualquer tipo. Daí a importância da tomada da consciência de si mesmo, pois o abismo que nos separa de nós mesmos e de Deus só pode ser superado desta maneira. Acerca disso ele diz,

Todo o problema reside na temporalidade, no finito. Posso, graças às minhas forças, renunciar a tudo e encontrar a paz e o repouso na dor. Posso enfim a tudo acomodar-me: mesmo se o cruel demônio, mais terrível do que a morte, terror dos homens, mesmo se a loucura me surgisse aos olhos no seu trajo de bufão e me fizesse compreender pelo aspecto que me era chegada a vez de o vestir, podia ainda salvar a alma, se porventura mais importasse em mim o triunfo do meu amor para com Deus do que a felicidade terrestre. (KIERKEGAARD, 1979, p.134).

Kierkegaard trata de questões essenciais ao desenvolvimento humano e espiritual quando investiga as causas de ruptura de um modo de ser para outro modo de ser, de uma forma de existir para outra forma de existir. Sua posição é de que não pode haver conciliação entre o velho e o novo, o que o opõe diretamente contra a dialética hegeliana. Kierkegaard dirige então o leitor para o livro de Hegel Princípios da Filosofia do Direito, especialmente o capítulo sobre “Moralidade Subjetiva”, terceira seção, onde ele escreve,

No seguinte consiste o direito da vontade subjetiva: que o que ela reconheça como válido por ela seja considerado como bom. É por isso que as suas ações, como fins que ela introduz na objetividade exterior, não lhe devem ser imputadas como justas e injustas, boas e más, legais e ilegais, senão segundo o conhecimento que ela tem do valor destas ações nesta objetividade. (…) Este direito de examinar o bem é muito diferente do direito de examinar uma ação como tal (§ 117Q). Deste ponto de vista, o direito da objetividade adquire a forma seguinte: como é uma modificação que tem de existir no mundo real, e também pretende portanto ser nele reconhecida, a ação há de estar necessariamente conforme com os valores deste mundo real. Quem nesta realidade quer introduzir a sua ação, no mesmo passo se submete às leis dela e reconhece os direitos da objetividade. Do mesmo modo, no Estado como objetividade do princípio da razão, a decisão jurídica de responsabilidade não pode limitar-se ao que se considera conforme à sua razão própria, à apreciação subjetiva do justo e injusto, do bem e do mal ou às exigências que se levantam para satisfazer a sua opinião. No terreno da objetividade, o direito de apreciação tanto vale para o lícito como para o ilícito, tais como se apresentam no direito em vigor, e reduz-se ao sentido mais estreito da palavra: conhecimento como fato de ser informado acerca do que é lícito e, por conseguinte, obrigatório. Com a publicação das leis e a vigência dos costumes, o Estado tira ao direito de exame o aspecto formal e a contingência que para o sujeito o direito ainda conserva ao nível em que nos encontramos. (HEGEL, 1997, p. 115).

A história de Abraão iria de encontro com esta teoria. Kierkegaard diz que Hegel estava errado por que ele não protestara contra Abraão negando sua posição como pai da fé e o chamara de assassino (KIERKEGAARD, 1979, pp.141–142). De fato, ele suspendera a moralidade e “falhara” em seu dever de seguir o geral.

O que Hegel não entenderia, é que Abraão suspendeu temporariamente a moralidade em virtude de um objetivo maior e que,

Para tanto é necessário paixão. Todo o infinito se efetua apaixonadamente; a reflexão não pode produzir qualquer movimento. É o salto perpétuo na vida que explica o movimento. A mediação é uma quimera que, em Hegel, tudo deve explicar e que constitui, ao mesmo tempo, a única coisa que ele jamais tentou explicar. Mesmo para estabelecer a distinção socrática entre aquilo que se compreende e não compreende é indispensável paixão e ainda com maior razão, naturalmente, para realizar o movimento socrático propriamente dito: o da ignorância. (KIERKEGAARD, 1979, p.133).

Com mediação, Kierkegaard quer dizer a mediação efetuada através do geral, para o geral. Segundo ele, a fé é exatamente aquele “fator” que inverte o jogo: o indivíduo, antes submetido ao geral, passa agora a lhe ser superior; e este é um paradoxo que precisa ser aceito se quisermos entender como se efetua o salto da fé, da esfera ética para a religiosa. Por exemplo: Abraão era apenas um humilde servo de Deus até receber seu chamado, então, pela fé e através da fé, ele deixou para trás sua vida de pai de família e seguiu para cumprir seu destino, não sem antes passar pela dor da separação, da resignação e, finalmente, da ruptura com o modo de vida ético, da vida em família, do casamento, do acordo em comum de comunicação. Na narração de Kierkegaard o vemos apontando a volta de Abraão ao seio da família, mas, na bíblia, seu destino é ainda mais árduo, como ele partindo sozinho para o lugar que Deus lhe designara para viver o resto dos dias.

De fato, um dos termos hegelianos mais rechaçados por Kierkegaard é o da Mediação. Mediação em Hegel é o mecanismo básico para a filosofia operar. É o que chamamos quando tese e antítese resultam em uma síntese superior a partir do esquema da dialética. Mais do que isso, em Hegel era a expressão própria de Deus, quando a consciência volta a si mesmo, mediando-se a si mesma. Para Kierkegaard, no entanto, não é assim quando se trata de fé e cristianismo. A tal ponto que ele declarou que “Filosofia e Cristianismo nunca podem ser unidos[4]” Ao menos não enquanto a mediação for o pressuposto para busca filosófica, pois o paradoxo inerente da fé cristã não se enquadraria neste método filosófico.

Eis-nos de novo no mesmo ponto. Se não há um interior oculto, e justificado pelo fato de o Indivíduo como tal ser inferior ao geral, a conduta de Abraão é insustentável, porque desdenhou as instâncias morais intermediárias. Mas se possui esse interior oculto, estamos em presença de paradoxo irredutível à mediação visto que repousa no fato de o Indivíduo, como tal, estar acima do geral, e de este ser mediação. A filosofia hegeliana não admite um interior oculto, um incomensurável fundamentado em direito. Consequente ao reclamar a manifestação, não está, entretanto, na verdade quando pretende considerar Abraão como pai da fé e dissertar a tal respeito. Porque a fé não é a primeira imediatidade, mas imediatidade ulterior. (KIERKEGAARD, 1979, p. 159).

Quando Kierkegaard admite que a primeira imediatidade esteja no domínio estético ele está a se referir à esfera estética da vida do homem, a primeira na ordem estabelecida por Kierkegaard e da qual muitos indivíduos às vezes nunca saem. A fé é imediatidade ulterior porque vem mais tarde e está próxima do eterno. Para Hegel, no entanto a fé era uma maneira rudimentar do espírito se aproximar da verdade metafísica. Nesse sentido Hegel inverteria os sentimentos e colocaria sentimento religioso como imediatidade, mas uma imediatidade primeira, primordial, ao passo que para Kierkegaard era obviamente o contrário, e toda a obra Temor e Tremor trata de demonstrar isso.

Por exemplo, Abraão em dado momento, após saber da ordem de Deus, tinha de escolher entre os requerimentos éticos de seu entorno e o que se esperava dele como seu dever absoluto com Deus. Daí que Kierkegaard relata quão difícil é para alguém na posição dele ter de sair do geral, da comodidade como indivíduo e ter que se pôr-a-prova. A tarefa é simples, mas muito penosa. Significa nada mais nada menos do que sacrificar o que mais se ama. Se ele não fala nada a ninguém, guardando tudo para si, não é por egoísmo, numa atitude que hoje comumente se atribui a um estereótipo masculino de ser, mas porque o paradoxo assim se expressa naquele momento. É por isso que Kierkegaard vai chamar a fé de nada menos do que a maior paixão do homem, isto é: a capacidade que o homem tem de se conectar com o sagrado através de uma introspecção profunda consigo mesmo. Paixão, portanto, que depois foi assimilada como romantismo e amor romântico, aqui quer dizer apenas algo como o refinamento máximo do que seja a verdade existencial do homem: sua subjetividade, sua introspecção, sua espiritualidade. E a fé, deste refinamento máximo, paradoxalmente, o salto para algo mais superior ainda.

3. Ordet

A Palavra (Ordet no original em dinamarquês) é uma produção dinamarquesa de 1955, dirigida por Carl Th. Dreyer (Th. está para Theodor, mas ele preferia ser chamado como está no primeiro) baseada na peça de Kaj Munk. É um filme em preto e branco impressionante e de grande qualidade, considerado um dos filmes mais importantes da história do cinema justamente pelo seu minimalismo e labor técnico, que quase sem efeitos especiais consegue persuadir o espectador com a possibilidade de que milagres são possíveis.

A Palavra é sobre uma família de fazendeiros, amorosa e unida, os Borgen, mas que também é abalada por tensões provenientes de uma série de divergências e adversidades — especialmente o comportamento extravagante de um dos irmãos adultos, aparentemente enlouquecido pela dedicação excessiva aos estudos de religião (em determinado ponto, em uma ruptura bem-humorada com a seriedade do filme, Kierkegaard é até mesmo citado). Contudo, nem todos pensam que Johannes (interpretado por Preben Lerdorff Rye) é louco e, quando Inger (interpretada por Birgitte Federspiel), a esposa de outro Irmão, morre em decorrência de problemas no parto, a menorzinha pede a ele que traga a mãe de volta — o que, ao final do filme, faz através de uma ordem. Na verdade, Dreyer deixa a cargo do espectador decidir as coisas. A cena, entretanto, é extraordinariamente poderosa precisamente por ele se recusar a dar respostas e intensificar a carga dramática do filme; a cena nos persuade graças à sua própria atmosfera contemplativa.

Podemos notar no filme pelo menos duas situações que levantam claramente razões para o debate filosófico. A primeira oportunidade acontece no encontro dos dois patriarcas, Borgen e Petersen, o sapateiro, causada pela negação do último em aceitar que sua filha se case com um Borgen. Neste encontro ambos têm uma discussão acalorada sobre qual fé é mais legítima. De um lado, Borgen vai afirmar que sua fé é luz e alegria, e do outro lado Petersen não vai admitir que isso fosse fé alguma. Borgen o acusa de pedantismo, de melancolia e por aí vai. Estes dois tipos de fé, apesar de sua aparente oposição, são complementares, e tornam evidente que, no jogo do destino, ter fé ou não ter fé não depende de ninguém além de nós mesmos.

Quando Petersen vê o milagre de Inger ressuscitando, ele já não mais duvida de seu irmão-na-fé; cede-lhe a filha em casamento com seu filho. Nisso a obra se conecta com o relato de Lázaro, tão crucial para o trabalho filosófico de Kierkegaard depois de Temor e Tremor, a saber: O Desespero Humano (doença para a morte) publicado originalmente em 1849. Quando através da palavra, Johannes ressuscita a supostamente morta Inger, surge o segundo ponto de interesse filosófico, isto é, a compreensão bastante acurada do conceito de desespero de Kierkegaard como “doença para a morte”. Anteriormente, no filme, temos uma prévia do que é este desespero em ação quando Inger morre e seu marido, em uma mistura de consternado e revoltado, pergunta pelo sentido da vida, se é que há algum sentido. Nesta cena de grande pathos (sentido de paixão, não de patético), é possível inferir que se demonstrou ali mais sobre a dor do vazio e da incerteza do que se faria em centenas de comentários eruditos sobre as obras de Kierkegaard.

O conceito de angústia em “O Desespero Humano” de Kierkegaard tem uma aplicação filosófica específica, dirigida com fins de diagnosticar primeiro e curar depois. Angústia, ou desespero, é o nome que se dá à sensação bem específica de estar desconectado de Deus, ou de si mesmo. Aqui Kierkegaard vai dizer, no entanto, que é justamente a possibilidade de se desesperar que torna o cristão capaz de se salvar, pois se não houvesse esse desespero seríamos impotentes diante desta mesma angústia. Isso condiz com a doutrina cristã de que somos para o pecado, e que somos incapazes de nos salvar por nós mesmos. Ele também afirma que existe uma distinção entre o homem natural e o cristão, sendo este último o único capaz de tirar proveito do desespero, esta “doença mortal”, desde que se enfrente o sofrimento conscientemente [5]·.

No fim do filme, com Inger “acordando” da morte através da palavra de Johannes não ficam dúvidas da verve existencialista do filme e da influência que nele teve o pensamento de Kierkegaard.

[1]Cf. THOREAU, Henry D. The Succession Of Forest Trees. 1860.

[2]Em referência ao filme norte-americano de 1999 de mesmo nome.

[3]Cf. STORM, D. Anthony. D. Anthony Storm’s Commentary on Kierkegaard.

[4]Cf. HANNAY, Alastair, apud. KIERKEGAARD, 2009, p. xxiii.

[5]Cf. O Desespero Humano, KIERKEGAARD, 1979 ed. Os pensadores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerações Finais

Kierkegaard escreveu abundantemente. Seus escritos contemplam mais de vinte volumes, que, somados ao diário pessoal totalizam uma quantidade incrível de páginas com denso teor filosófico e que radiografaram de modo único o contexto histórico em que ele viveu. Mas, ao mesmo tempo, reflete e evidencia verdades tangentes a todo indivíduo de todas as épocas, criando, por assim dizer, um manual para a vida em qualquer tempo. Acredita-se, portanto, que ninguém que entre em contato com a obra de Kierkegaard saia ileso. Suas palavras se fazem ouvidas à força de repetição e relevância. Também, ninguém pintou acontecimentos bíblicos com tanto realismo e com fins tão sutis. Porém, ele não é inspiração apenas para o cristão, mas é também para qualquer um que tenha interesse em ler uma especulação vivaz e sempre oportuna da história da filosofia e do cristianismo. Seu comentário estético é completo e articulado, sua compreensão dos antigos gregos é comprovada. Coerente com suas palavras foi um rebelde até o fim e mesmo assim dá para contar nos dedos de uma só mão quantas vezes sua vida pessoal foi alvo de atenção indevida. Finalmente, pode-se considerar que ele conseguiu alcançar seu objetivo de viver para a reflexão, uma “reflexão até o fim”.

A intenção principal do presente trabalho foi apresentar a ideia de suspensão teleológica da moralidade e o conceito de paradoxo da fé desenvolvido por Kierkegaard em sua obra Temor e tremor. Como acabamos de ver, o assunto é denso e de grande potencial para debates. Ademais, a obra estudada é de um primor filosófico que poderia, a princípio, confundir um estudante inexperiente e sem orientação. Exceto por isso, os temas escolhidos foram motivo de grande alegria para o autor, e, espera-se, também, para o leitor. É conhecimento geral de que Kierkegaard, apesar de sua escrita tão hábil, não é um autor nem fácil nem muito famoso (dentro dos debates intelectuais), e este trabalho teve a intenção de introduzir seu pensamento novamente no meio acadêmico e revigorar suas discussões à luz das discussões atuais.

O presente trabalho apresentou os conceitos principais para a compreensão da obra Temor e Tremor, e introduziu alguns novos, como o conceito de angústia. Também fez referência ao filme dinamarquês Ordet como expediente multidisciplinar para enriquecer a compreensão do filósofo. Os seguintes conceitos: paradoxo da fé; salto da fé; cavaleiro da fé são os principais conteúdos do presente trabalho; também, subjetividade, existencialismo (introdução) e cristianismo, e de sua apresentação dependeram todo o esforço e tempo desprendidos.

Paradoxo da fé é fé e é também acreditar em virtude do absurdo, pois que fé e paradoxo são inerentemente interligados, ou seja, é acreditar mesmo que ninguém mais acredite, e às vezes até mesmo porque ninguém mais acredita. Assim: algumas vezes é preciso saber calar e outras saber se fazer notar, mas todas as vezes é responsabilidade do indivíduo ser fiel a si mesmo e à sua verdade. Salto da fé é agir em posse deste conhecimento, isto é, em vista da realidade da fé efetuar uma ação volitiva movida pela fé, tornando-se aquilo que se é em virtude do absurdo. Dito de outro modo, se tornar indivíduo, para Kierkegaard, é um dos maiores objetivos do homem, e um dos mais difíceis também, justamente por que envolve esta série de desafios e obstruções.

Cavaleiro da fé é aquele indivíduo que está de acordo com essa lei interna de dever absoluto a Deus, e que, por acaso, se manifesta na exterioridade através da vontade expressa de Deus, como quando Deus nos coloca à prova. Portanto, são dois fatores que consagram o cavaleiro da fé, primeiro, ter fé, depois, ser tentado. Por exemplo: quando Abraão subiu ao monte com a intenção única de realizar a vontade de Deus, ele era Cavaleiro da fé, mas não saberemos nunca se já o era desde o início, apenas esperando ser tentado, e foi só no fim destes acontecimentos que se pôde ver o tamanho desta fé, e foi quando Deus lhe deu um carneiro para sacrificar no lugar de Isaac. Se ele fosse apenas resignado e não tivesse fé, jamais sacrificaria Isaac, pois alguém resignado é capaz de fazer muitas coisas, até mesmo grandiosa, mas apenas alguém com fé é capaz de ir além.

Com isso se afirma logo que paradoxo não é um fato objetivo, mas apenas uma consequência de, pode-se dizer, tentar “ver o infinito através de olhos finitos”. Ele decorre desta transferência da verdade que é fora do tempo para a existência que é dentro do tempo. O paradoxo não é um empecilho, mas um lembrete de que só com fé se é capaz de ir mais além. A fé é a maior paixão do homem. Isto é, a maior prova objetiva (salto da fé) da subjetividade possível de um indivíduo é a fé, pois, apenas quem foi seriamente a fundo de si mesmo, quem despertou para si mesmo — somente este é dada a capacidade de acreditar. Daí que também que se chame fé imediatidade ulterior.

A obra Temor e Tremor não foi o que se chama groundbreaking, uma obra que abalou todas as crenças estabelecidas, que alterou a maneira de pensar da elite intelectual de sua época, mas, dentro do corpus kierkegaardiano é uma obra que merece um destaque especial. Ela é a obra que faz a transição gradual do filósofo para o teólogo. Suas ideias darão continuidade ao projeto de desacreditar Hegel, e darão cabo também do projeto dos três “estágios da vida”, demonstrando a importância da fé nesta mudança de um modo de vida ético para o religioso sem, contudo, abandonar a dialética como método de trabalho. Para Kierkegaard a fé prescindia a filosofia. Suas obras aos poucos se voltarão para uma visão cada vez mais religiosa da vida, e sua preocupação se tornará cada vez mais voltada para o que significa ser um indivíduo cristão em face de um mundo onde a verdade cristã está morta, ou corrompida.

DEDICATÓRIA

Para minha mãe

Salete Fatima de Barros Dantas

Que sempre insistiu tão gentilmente para que eu não desistisse.

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