Explorando o alívio de acordar de um sonho absolutamente terrível que tive dia desses
Os sonhos são as pedras de toque de nosso caráter. Não somos menos aflitos quando nos lembramos de alguma indignidade em nossa conduta em um sonho, do que se ela tivesse sido real, e a intensidade de nossa dor, que é nossa expiação, mede o grau pelo qual ela está separada de uma indignidade real. Pois em sonhos nós apenas agimos uma parte que deve ter sido aprendida e ensaiada em nossas horas de vigília, e sem dúvida poderia descobrir algum consentimento de vigília. Se esta mesquinhez não tinha seu fundamento em nós, por que estamos de luto por ela? Nos sonhos, nos vemos nus e agindo com nosso verdadeiro caráter, ainda mais claramente do que vemos os outros acordados. Mas uma virtude inabalável e imponente obrigaria até mesmo seus sonhos mais fantásticos e tênues a respeitar sua autoridade sempre vigilante; como estamos acostumados a dizer descuidadamente, nunca deveríamos ter sonhado com tal coisa. Nossa vida mais verdadeira é quando estamos em sonhos acordados.
Thoreau, Henry David. A WEEK ON THE CONCORD AND MERRIMACK RIVERS, 1867
Tive um sonho esquisito na casa de meu pai e minha mãe, onde eu me convencia que havia assassinado uma pessoa inocente. Foi assustador porque eu de fato me convenci disso, e aceitei o fato como real quando acordei profundamente abalado. Levou mais do que o que normalmente leva para discernir entre sonho e realidade e por um momento eu acreditei que havia acordado na pele de outro homem.
Me lembro de que durante o sonho eu não acessava o fato em si, mas apenas evidência de que havia ocorrido; era um menino de meu bairro (esse mesmo em que habito enquanto escrevo isso) que eu havia dado um jeito de matar. Sua camiseta vermelha, agora percebo, poderia ter sido de sangue. Muito estranho, muito horrível, e a culpa me consumiu até a hora em que acordei. Quando percebi finalmente que era um sonho, eu me aliviei profundamente, mas não fixei meus pensamentos nele como normalmente faço com sonhos vívidos; ainda assim, hoje, eu penso nele.
Segundo Thoreau sonhos são representações de nossa vida acordada, de modo que não podemos sonhar com algo que não vimos no dia a dia. Ainda que de modo incerto, confuso e surreal, sonhos são calcados na realidade cotidiana. O fato de que ele mistura elementos pode ser uma explicação para um tema tão incomum: eu lia crime e castigo aqui em casa antes de viajar. Ainda não acabei esse livro, e uma parte importante do sonho era como eu me sentia em relação à sociedade, em como eu era odiado. Isso se deve à leitura de outro livro, O Estrangeiro, em que a opinião pública tem grande importância no desfecho, mas também pode ser relacionado com minha incursão no espectro da direita política, coisa que decidi explorar mais seriamente ao acabar de ver séries como Justified.
Como é conhecido por leitores de Dostoievski, a culpa não necessariamente está envolvida com o crime. Ela se constrói aos poucos, com pedaços da alma do perpetrador. Eu senti minha alma sendo consumida enquanto aceitava minha culpa, e não vi nenhum final esperançoso naquilo, com exceção de despertar, que é o equivalente à morte daquele que vive no sonho. Refletir sobre nossas ações nos sonhos é refletir em nossa própria natureza. Para Thoreau, Sonhos são a pedra de toque de nosso caráter.
Neste sentido, refletir sobre a natureza do crime e do castigo, um tema caro à direita como peça fundamental de sua construção ideológica, para mim, é refletir sobre a natureza de todos os meus crimes, por menores e indolores que sejam: minha mãe sempre disse que roubar uma agulha que seja ainda é roubo. Ainda assim eu me dediquei, em um período antigo e conturbado da minha vida, a pequenos roubos em mercados muito grandes. Normalmente eram apenas um chocolate, e quando eu tentei pegar algo diferente, uma escova de dentes, eu fui pego pelos seguranças. Naturalmente eu não precisava da escova, assim como não precisava das outras coisas, e me convencia, na época, que mercados mereciam serem roubados, que eu merecia ter o que eu quisesse. Ao ser pego e ter minha primeira mugshot tirada por eles e receber uma advertência de que nunca mais deveria entrar lá, eu despertei para a obviedade de minha tolice e nunca mais fiz nada parecido.
No filme Oldboy, uma tragédia moderna que se passa na Coreia do Sul, o protagonista é perseguido e condenado por ter feito apenas uma mera fofoca quando era adolescente; naturalmente ninguém deveria viver com medo de que cada deslize vá encetar em consequências catastróficas — daí que chamo essa história de trágica. Segundo uma conversa que tive com meu veterano de filosofia há muitos anos atrás, o João (e que, agora percebo, havia lido Dostoievski), o assassino e o santo se aproximam em sua entrega à paixão. Uma pessoa poderia matar sem sentir nenhuma culpa pelo simples fato de estar desconectada da moral vigente ( mesmo vale para o santo que se sacrifica pelo seu irmão). Em uma guerra não apenas é lícito matar, mas obrigatório. No meu sonho o que mais me doía não era apenas aceitar a culpa, mas saber que eu seria perseguido e odiado pelos meus companheiros, enfrentando eu mesmo uma espécie de morte social.
Um de meus livros favoritos de filosofia oriental, “A arte do arqueiro zen” conta a história de um alemão, filósofo, em seu encontro, quando passou a viver no Japão, com um mestre de Kyudo. O choque entre diferentes culturas toma grande parte do livro, mas o que mais me atraiu foi a noção de que para se atingir a perfeição de qualquer ato artístico, nesse caso um tiro perfeito de arco, é preciso que o artista e sua arte se tornem um, que o atirador e o alvo se tornem um, e essa união só se faz na medida em que uma pessoa deixe de pensar e de se identificar como um indivíduo separado.
DT Suzuki, um filósofo zen budista absolutamente maravilhoso que conheci no começo da minha faculdade de filosofia, vai endossar esse ensinamento em uma palestra incluída no excelente Zen Budism and psychoanalysis com organização de Erich Fromm. Segundo ele, a perfeição acontece quando estamos tão treinados naquilo que nos propomos que o fazemos sem pensar, mesmo em sonhos. Ele conta a história de um samurai zen que treinara tanto seus sentidos para saber de onde vem o perigo que, certa vez, quando seu pajem se entretém com a ideia de que ao ver seu mestre deitado dormindo até mesmo ele seria capaz de matá-lo, o samurai acaba sentindo.
Segundo Thoreau, uma virtude inabalável não permitiria que sonhos como aquele que tive ocorreriam; e é nos ensinamentos orientais que penso quando ele fala isso. Porém para os artistas os sonhos são maneiras de extravasar sua criatividade, e para os surrealistas a ideia de colocar limites no que se pode sonhar ou não seria uma espécie de crime contra a criatividade. Naturalmente não quero dizer que para ser um artista alguém tenha de ser depravado, e pensar isso é um desfavor tanto para o filósofo quanto para o artista; tudo vai depender da chave de interpretação que você usar para lidar com seus sonhos. Do meu ponto de vista, e a julgar pelo modo como tenho lidado com os acontecimentos, um treino de virtude nunca vai ser excessivo. Por outro lado, se sentir influenciado e tirar uma reflexão do ato espontâneo que acontece em nossas almas durante morte em vida que é o sonho, também, pode ser muito bom.