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Perdoando os imperdoáveis

RESUMO: O autor relata sua experiência ao descobrir sobre o massacre de Utøya, na Noruega, em 2011, e como isso o afetou profundamente. Ele reflete sobre a dor e o sofrimento do mundo, questionando sua própria capacidade de se importar com tragédias distantes. O autor também menciona outros eventos trágicos, como o 11 de setembro, e explora o significado de sua intensa emoção em relação ao massacre de Utøya. Ele compartilha suas próprias experiências de tristeza e solidão, e como essas lágrimas foram diferentes, pois foram uma expressão da dor do mundo. O autor também discute a motivação do atirador e a natureza do mal na sociedade.

Sei onde eu estava em 22 de julho de 2011, há oito anos atrás. Eu sei porque foi o dia que eu soube do massacre de Utøya, na Noruega. Agora, não pense que eu sou o tipo de pessoa que se importa com outras pessoas do outro lado do mundo, não posso sequer afirmar, em termos estritamente racionais, nem mesmo que o Mundo exista, quanto mais situações complexas envolvendo pessoas e mundo, mas o fato é que foi neste dia que eu senti, de uma maneira muito distinta e com uma intensidade muito grande, para além de qualquer medida, a dor e o sofrimento do mundo.

Entenda, não parto do princípio lovecraftiano de que as pessoas estão em sintonia no mundo dos sonhos. Também não acho que, como em sense8, aquela série cancelada da Netflix, eventos possam acontecer simultaneamente ao redor do mundo de forma que possam se causar mutuamente; somos sete bilhões de pessoas e isso significa um número mais alto que qualquer pessoa possa entender. Mas, analisando agora as terríveis manchetes ao longo destes anos posso tentar entender o significado de meu desespero e tentar dar uma razão ao sem sentido.

Que eu saiba, eu não me emocionei com a queda das torres gêmeas (18 anos atrás), as pessoas pulando para o vazio em desespero; também, tive poucas fricções pelos atentados nas escolas naquele país (Columbine, 20 anos atrás) e nem mesmo com o Massacre do Realengo (2011, três meses antes do massacre em Utøya), com toda a cobertura intensa da mídia eu pude sentir algo. Sofri muito, no entanto com o acidente da Boate Kiss (6 anos atrás), os atropelamentos de caminhão criminosos em Nice (3 anos atrás), e neste último massacre, ainda este ano, em Suzano, eu já estava devastado antes mesmo de saber os detalhes. Mas nunca eu fiquei tão mal como quando soube do massacre de Utøya.

Nesta época eu vivia nas periferias de Várzea Grande e levava uma vida perfeitamente inútil; fazia faculdade e sonhava em terminar ela em um ano ainda; andava com minha bicicleta e vivia o corpo e a própria juventude; tinha as visitas ao cerrado e o misticismo; fumava muita maconha e passava grande parte dos meus dias enfurnado em casa e chapado; ficava no computador e às vezes assistia televisão. Foi quando vi o noticiário e as primeiras imagens de helicóptero da ilha e dos corpos espalhados.

Neste dia em especial eu poderia estar paranoico, porque não? às vezes a maconha faz isso com a gente. Talvez eu tenha apenas tido uma bad trip — ansiedade e taquicardia, coração apertado, desespero e a busca insana de entender o que se passa na mente de uma pessoa que mata tantas pessoas, jovens em sua maioria, indefesas em uma ilha somente por “motivos políticos”.

Política, vejo agora em retrospecto, deveria ser um triunfo de nossa sociedade e da civilização humana, não o esgoto da humanidade. Não entendi nada e na confusão crescente, naquela noite eu só pude chorar e lamentar. Foi neste dia que eu saí de casa e no terminal, esperando o ônibus naquele lugar lotado de gente mas ainda assim inóspito eu comecei a chorar sem nenhum tipo de impedimento — as lágrimas só caíam sem parar enquanto eu pensava nas pobres pessoas mortas, na maioria adolescentes, espalhadas pela ilha e boiando no mar. Tudo pelas mãos de um único atirador solitário.

Eu era este lobo solitário. Eu era o matador doente. Era eu que tinha os corpos embaixo de casa, dentro do armário. Ele, que sobreviveu e foi preso — e tão bem tratado (ninguém tocou em um fio de cabelo dele apesar de ter sido pego com a arma na mão e o com oitenta mortos aos pés). Ele que depois processou o estado por “maus tratos na prisão norueguesa” (não lhe deram um playstation 4); senti então em mim a dor de ser este idiota.

Eu era este boçal, eu era este pentelho, este “virjão”. Este cabaço, este incel. Se eu não houvesse tentado entende-lo e perdoa-lo certamente eu não teria sofrido tanto — uma vez que a maior dor é a dor de se colocar no lugar do outro — e ao verter aquelas lágrimas eu soube imediatamente que eram de fonte pura que é a fonte da dor. Ninguém que estava por perto fez menção de se aproximar e logo elas cessaram. Em estupor observei que eu fora apenas uma válvula de escape de uma dor que veio lugar nenhum e foi para lugar nenhum: a dor do mundo.

Talvez eu estivesse apenas no limite da tristeza e da solidão e não soubesse. Raramente choro, e choro mais raramente em público, e poucas pessoas podem dizer que me viram neste estado. As vezes que mais me marcaram foram as lágrimas no carro enquanto meu pai me levava embora da casa do Carlitos após eu ter gastado no telefone deles em excesso e sido convidado a sair; outra foi na saída do trabalho de caixa de mercado no Comper de Várzea Grande, quando eu sabia que estavam enterrando o Leuzimar e eu estava ali de mãos atadas.

Também houveram uma ou outra vez em que algumas garotas quebraram meu coração. Em uma chorei na janela do ônibus enquanto via a cidade e a mulher ficarem para trás, e me senti tão pequenino, como uma peteca nas mãos de gigantes, indo e vindo atrás de minha felicidade e meu futuro. Outra vez foi no colo da minha mãe por causa de uma decepção amorosa onde uma namorada que eu nunca quis comprometer-me e cuja importância só percebi quando perdi; nenhuma destas lágrimas foi por um motivo além de minhas circunstâncias mais imediatas, no entanto. É exatamente este o rompimento da casca que nunca é fácil, e que nunca consegui me acostumar.

Ainda sobre o matador da Noruega; ele disse no julgamento (e em uma insana carta manifesto que longe de me convencer só me faz desconfiar da realidade de todos os motivos) que tinha motivos políticos, eu duvido. Talvez fosse, pelo menos para mim é, apenas a camada de verniz sofisticador que ele quis aplicar à sua insanidade e impulso animal, mas ainda assim, pois eu li um artigo do Knausgard (que é norueguês) sobre o assunto, é certo que ele fez por causa de um sentimento de inferioridade avassalador e uma quantidade absurda de ódio acumulado.

O caos e a demência em ação, com acesso a bombas e armas automáticas; o ser humano em todos os seus defeitos (fanatismo, paranoia delirante e narcisismo) aumentados exponencialmente pela circunstâncias. Tudo que cresce demais, em física, pode ser considerado uma explosão. Na sociedade quando cabaços resolvem soltar suas frustrações em velocidade muito grande temos massacres. E a quantidade de armas e de cabaços têm só aumentado. A natureza do mal é sempre chocante e essas pessoas deveriam chegar no inferno em cinco minutos.

Tive muito tempo para pensar nisso. O homem não pode ser Deus, embora ande em uma corda sob o abismo e não perceba; somos finitos em nossas capacidade. Nossas ações criam nosso universo, e as consequências delas criarão nossas novas circunstâncias. É impossível não pensar que pessoas de tão baixa classe não irão para uma existência de miséria se houverem existências depois da morte como ficou retratado no último filme do Lars Von Trier, A Casa que Jack Construiu (2018).

Segundo a sinopse do filme “A história segue Jack, um serial killer altamente inteligente, ao longo de doze anos, e descreve os assassinatos que realmente desenvolvem seu louco interior”. Neste filme temos uma das últimas participações de Bruno Ganz antes de sua morte este ano. Ele faz nada mais nada menos que Virgílio — aparentemente LVT acredita em um supra mundo místico à maneira que um Hermann Hesse em Lobo das Estepes.

Por minha vez, eu acredito em Karma Imediato ou Esquecimento Eterno, em injustiça universal, e, ao mesmo tempo, como explicar, em inferno e em céu também. Mas mesmo eles não são eternos. Nada é.

E não importa se na Noruega, EUA, Nova Zelândia ou Brasil, nós criamos vácuos de amor e civilidade que se tornaram potencialmente mortíferos. Como cobras criadas, acreditamos que eles não vão morder a mão que as alimenta, e deixamos as defesas caírem. Ninguém sabe lidar com isso, em nenhum nível, porque não queremos nos tornar o mal que desejamos exterminar; e deste mal ninguém conseguiu destilar algum antídoto.

Como quem olha tanto para o abismo que acaba sentindo o abismo olhar de volta, a humanidade, eu incluso, com todos os vieses que isso contém, já não percebe os percalços que ainda a espera e quanto sangue já derramamos para criar o mundo no qual vivemos.

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