"Eu estudei filosofia, história da religião, estética. E acabei me colocando em correntes. Por minha livre vontade”
Resumo: O autor reflete sobre suas experiências de viagem e busca por identidade, discutindo a importância de pertencer a uma tribo e como isso afeta nossa vida. Ele compartilha suas experiências de viagens e encontros significativos ao longo dos anos, destacando a constante busca por descoberta e autodescoberta. O texto também aborda a transição para a vida adulta e a necessidade de encontrar um equilíbrio entre a liberdade e a responsabilidade.
Quando penso nas coisas mais incríveis que somos capazes de fazer, sou o tipo que se surpreende com qualquer coisa. Por isso mesmo venho a público dizer que tenho mais de 150 horas de Civilization V, mas que isso nada serve para jogar a sexta edição deste famoso jogo de estratégia — as regras são diferentes demais. O mesmo vale para o resto da vida.
Eu fui, certa vez, de carona e a pé, acampando e pedindo ajuda do interior do Mato Grosso até Belém do Pará, por mais de 1500 km, com um amigo apenas— e uma vez lá eu ainda tinha que descobrir por que eu queria tanto estar lá afinal — qual era a minha tribo. O que me tomou o tempo de comemorar a vitória da viagem bem-sucedida. Foi realmente um choque, e destes dias tenho uma carta para escrevi para um amigo em Cuiabá:
então maluco, acho que não é retórica, ou força de expressão, mas sim uma nuance de que certas coisas nunca mudam. Por aqui tem muita gente de todo lugar, e tantas linguas diferentes que nem percebo mais a diferença — até o portugues me soa estranho. E por isso mesmo, e também por que estou aqui já fazem duas semanas, e vimos a coisa crescendo, talvez isso não esteja assim tão fantástico ou mítico como antes me soava. Aconteceu que derrepente me sinto um estrangeiro no meio de todos estes estrangeiros, um estrangeiro de alma, não de nação, e me percebo silencioso porque ninguem consegue, ou se interessa mesmo, em me ouvir, e eu me percebo sem falar porque, apesar de todo o conhecimento que posso ter adquirido, nada me serve afinal. Não é exagero ou firula quando digo então que esperava mesmo pelo ônibus de cba, e não era somente para ter uma carona para voltar, ou para ver rostos conhecidos, também, talvez, mas antes de tudo, estava muito afim mesmo de me deparar com você e o hall, e pensei que talvez, apesar das diferenças — (…) poderíamos, juntos, curtir pra porra aqui nesta terra de exageros e sotaque chiado.
aquele abraço.
Essa questão (qual é a sua tribo?) não é de todo inocente — todos procuramos nos relacionar com quem é parecido com nós. E mesmo naqueles relacionamentos que são completamente diferentes nós ainda temos uma tendência a manter a harmonia do todo. Se você sabe qual é sua tribo você dificilmente acabará sozinho — ao menos em teoria. Na realidade: passamos muito tempo sozinhos para descobrirmos quem somos nós e qual é a nossa turma.
A minha viagem de cara & coragem para Belém já vai para mais de dez anos e ainda hoje tenho dificuldades em assimilar tudo o que aconteceu naquele tempo — desde o coração quebrado pela namorada até as oportunidades de beber chá de ayahuasca sem ter que participar de cerimônia alguma — só eu, o barqueiro e os rios imensos de Belém. Das coisas que certamente assimilei estão a passagem para a vida adulta, a necessidade de buscar a pureza e o limite desta mesma busca.
Nestes dez anos passados eu tive outras oportunidades de descoberta muito mais importantes dos que os três primeiros meses de 2009, que foram os meses de planejar, viajar e participar do Fórum em Belém; eu tive a chance de conhecer o amor da minha vida, de conhecer o mestre e o retiro de meditação perfeitos (e de ser expulso dele), de recomeçar a vida que eu tentava abandonar por medo, e tive a chance de viajar, fazer amigos e subir um monte na Argentina.
Nestes dez anos eu fiz escolhas que determinavam os limites da minha existência — uma existência que anulava outras existências — como naqueles filmes de viagem no tempo, ou de teoria do caos, como o Efeito Borboleta — só que com o único efeito especial de ser um anacronismo. Inclusive a cada vez que me lembro destes dias sinto que algo se apaga e outra coisa é re-escrita no lugar — como se a memória se tornasse menos confiável e mais fictícia.
Quando eu vivia há dez anos atrás, atrás de coisas como viagens, experiências e sonhos, eu achava que iria fazer coisas como o Daniel — que eu conheci lá e hoje é professor de yoga em Curitiba — que viera de bicicleta ao longo da costa para participar do Fórum — um feito muito mais impressionante que o meu. Também achei que eu ia viajar de bike, viver de pouco e com um brilhante céu estrelado sob a cabeça. Mas hoje eu nunca estive tão longe disso.
Muitas sementes foram plantadas no meu coração naqueles dias, mas a vida de errância não foi uma das que floresceram; não foi falta de perseverança, ambição ou planejamento — como eu disse, coisas muito mais incríveis aconteceram desde então — como aprender meditação, se formar em filosofia, começar geografia e parar de fumar maconha. E talvez eu ainda vá fazer estas coisas um dia, mas não hoje. E certamente não como eu idealizei. Não dá para viver na montanha mágica para sempre e é sempre um choque quando descemos dela.
The Valley of the Shadow of Death — George Inness
É preciso paciência — o corpo sem cabeça padece, e a ação sem preparação é malfadada. De nada adianta a energia e a valentia se não tivermos a têmpera e a astúcia. O mesmo vale para a própria verdade — quando somos muito jovens facilmente acreditamos que precisamos largar tudo, virar as costas a todos e recomeçar a vida, e o mundo se necessário, com as próprias mãos, do nosso jeito. Mas quando chegamos ao topo do mundo vemos que existem tantos outros topos a se alcançar, e que nunca avançamos muito para além de nós mesmos. Isso me lembra aquela citação do livro, Mente de Principiante:
Quando os jovens se entusiasmam com o Zen, acabam desistindo de seus estudos para irem a alguma montanha ou floresta a fim de praticar [meditação] zazen. Esse tipo de interesse não é o verdadeiro interesse. Suzuki, Shunryu
Eu estou a 35 dias sem beber — um dia de cada vez, evitando as armadilhas, trabalhando a ansiedade — por uma escolha minha — e estou fazendo trinta e cinco anos em três meses — e não me sinto muito mais velho do que eu era a dez anos atrás — vivendo como um hippie anarquista e existencialista — eu ainda tenho os mesmos impulsos — largar tudo, viver com pouco ou nada, consciente apenas de meus processos mais básicos na mais básica consciência. Estas coisas nunca mudam. O que muda é a perspectiva que adquirimos sobre nós mesmos.
Ontem eu era preso ao meu corpo e às possibilidades somente dele e nada mais — a ditadura da matéria sobre a mente. Hoje, liberto disso eu vejo que sou preso apenas onde acabam a imaginação, a novidade e a curiosidade. Saio de uma prisão pequena para outra maior. Entre mente e corpo, eu me entrelaço. Consciente de que um não anda sem o outro, me sinto numa dança, onde o progresso é inconcebível senão através da beleza dos movimentos. Não há o que temer, no entanto — estamos todos indo de volta para casa.