Morreu hoje o primeiro mato-grossense decorrente de infecção pelo novo coronavirus. Ele tinha 54 anos e era gerente em um supermercado. Olho a foto escolhida pelo site de notícias. Ele esta sorridente, e tem, abraçada a ele, um mulher em vestido de festa (ele próprio esta bem elegante). O rosto embaçado para preservar a privacidade dela não esconde que era um dia especial.
Aconteceu em Lucas do Rio Verde, uma cidade ao norte daqui. Com quase setenta mil habitantes, é uma das cidades que cresceram e enriqueceram muito com o agronegócio e a exportação de soja para a China.
Já foi manifestada, em outros ensaios, minha posição sobre a vida nestas cidades sem história, no interior do Matogrosso, de alto IDH e crescimento demográfico explosivo. Não é por isso que escrevo, no entanto.
Como seres humanos, eu sempre repito, pois eu mesmo demorei muito tempo para entender, somos limitados em muitos sentidos. Não apenas os sentidos físicos (ouvimos e vemos uma fração do que existe, etc.) mas também epistemológico. Os assim chamados vieses, ou tendências que temos a seguir e acreditar quando confrontados com a realidade.
Um destes vieses que nos impedem de conhecer a realidade é em relação a números muito grandes. Simplesmente não conseguimos imaginar, quem dirá nos guiar e tomar decisões a partir deles. Aprendi, por exemplo, anteontem, procrastinando no youtube, que na distância entre a terra e a lua caberiam, com um espaço discreto de quase mil km entre eles, todos os planetas do sistema solar; da mesma maneira, sete bilhões de pessoas no planeta (subindo) ou um milhão de mortos em três meses de pandemia são números que não somos capazes de entender, ao menos não como entendemos os dias no calendário, as horas até a próxima refeição ou a quantidade de pessoas que encontramos essa semana.
O Guia dos Mochileiros das Galáxias fez recentemente 42 anos. Quem conhece um pouco sabe o significado que este número tem na história criada pelo saudoso Douglas Adams. Temos lá, entre outras coisas, uma máquina chamada vórtex da perspectiva total, uma máquina usada para torturar e aniquilar inimigos, pois ela mostra à pessoa inserida nela, uma perspectiva do universo onde percebemos quão minúsculos somos. Dizem que a única pessoa que conseguiu sair de lá inteira foi o bon vivant e megalomaníaco Zaphod Beeblebrox mas só porque seu ego era muito grande mesmo.
Apesar da piada, esta brincadeira aponta para uma observação sagaz sobre nossa natureza: não somos capazes de aguentar a verdade, e que a verdade é dolorida. Mas isso também é uma abstração intelectual — precisamos aprender a aceitar os fatos ainda que os fatos possam não estar completamente desvelados — a ciência apesar do que possa parecer, anda a passos de formiga. E não só a questão da subnotificação — segundo o podcast Foro de Teresina 94, o número real de contaminados pode ser até dez ou onze vezes o que vemos no noticiário. O fato é que as coisas mudaram para todo o mundo, que o ano para a economia já acabou, que vamos ter que nos reinventar praticamente do zero. E que as pessoas vão morrer e que existem pessoas com história de verdade atrás dos números.
É incerto onde a morte nos espera, aguardemo-la em toda parte. Meditar previamente sobre a morte é meditar previamente sobre a liberdade. Quem aprendeu a morrer desaprendeu a se subjugar. Não há nenhum mal na vida para aquele que bem compreendeu que a privação da vida não é um mal. Saber morrer liberta-nos de toda sujeição e imposição. de Montaigne, Michel. Os ensaios: Uma seleção (Locais do Kindle 737–739). Penguin-Companhia. Edição do Kindle.
Tenho tido sonhos lúcidos. Neles, vividamente, observo os acontecimentos, muitas vezes envolventes onde sempre há uma lição a se aprender. Sei que são lúcidos por que eu sinto que estou aprendendo algo ali. Que eu faça parte da encenação e dance conforme a música fala mais sobre minha maneira de ver a vida do que sobre a natureza do sonho. Para mim a vida é como um teatro, uma grande encenação, uma imensa alegoria cujo sentido está sempre exposto e por isso é tão pouco percebido. Não é original, Shakespeare já pensava assim, mas é como eu me sinto.
Se a vida não passa de um sonho, os sonhos lúcidos são meta-encenações e por isso mesmo eu engajo neles com um senso maior de desprendimento — continuarei sonhando quando acordar. Porém, em momentos como o que vivemos, é grande a sensação de participação de algo maior, mais real e até adventício. Epidemias são comuns na história humana desde antes de criarmos civilizações (como aponta esse excelente podcast do Mizanzuk, com Tupa Guerra e Filipe Figueiredo), e são momentos ricos na nossa história por que nos lembra, coletivamente, de nossa condição essencial nessa vida: de que vamos todos morrer um dia.
Se pudéssemos apresentar a cada um a conta dos anos futuros, da mesma forma que se faz com os que já passaram, como tremeriam aqueles que vissem restar-lhes poucos anos e como os economizariam! Pois, se é fácil administrar o que, embora pouco, é certo, deve-se conservar com muito cuidado o que não se pode saber quando acabará. Sêneca. Sobre a brevidade da vida . L&PM Editores. Edição do Kindle.
Não à toa as vendas da alegoria existencial A Peste de Camus aumentaram significativamente; as pessoas passam a questionar a natureza da própria existência em épocas como essa. Que o hábito permaneça mesmo depois da crise é uma coisa que tenho torcido do fundo do coração. Eu mesmo nunca li essa obra, e tenho tido imensas dificuldades para ler qualquer coisa; recentemente voltei a beber, visto que as vantagens de não-beber estavam perfeitamente delineadas — mas que não era muito conveniente em tempos de isolamento. Em casa, de férias, descobri que ter o dia todo livre para fazer as coisas que estavam na minha bucket list não é suficiente; no equilíbrio entre o autodesenvolvimento e a estima pelos meus iguais eu sempre pendo para a estima.
Não que sejam coisas opostas; não são. Mas, outra vez, a sensação de algo grandioso que afeta a tudo e a todos acontecendo neste exato instante faz como que espíritos excitáveis como o meu rapidamente fechem o livro e abram as notícias. Meu problema com produtividade é que só vejo que fui produtivo quando já não sou mais; muitos começos e poucas conclusões me fazem contar quase exclusivamente com o oráculo da noite para realizar minhas mudanças mais íntimas.
Mudança, sim. Porque a mudança não é a inimiga. A mudança não é a responsável pela tristeza, pela perda ou pela falência; a mudança é parte intrínseca da vida e faz parte do pacote que é viver. Só não experimenta a morte quem já morreu, e deste estado não temos, nunca, jamais, ciência alguma.