Como é ser, ao mesmo tempo, parte da geração mais falida e mais letrada da história
RESUMO: O texto aborda a questão do aluguel como um sistema parasitário dentro do capitalismo. O autor reflete sobre sua própria situação de ser um "parasita" que recebe aluguel sem fazer nada, enquanto outras pessoas precisam se esforçar para pagar. Ele questiona a moralidade do aluguel e a falta de escapatória desse sistema. O texto também discute a busca da felicidade e a necessidade de ter uma casa própria. Por fim, o autor destaca a importância de estar atento ao sistema capitalista e usar o conhecimento a nosso favor.
Sem meias palavras, o capitalismo é um sistema parasitário. Como todos os parasitas, pode prosperar durante certo período, desde que encontre um organismo ainda não explorado que lhe forneça alimento. Mas não pode fazer isso sem prejudicar o hospedeiro, destruindo assim, cedo ou tarde, as condições de sua prosperidade ou mesmo de sua sobrevivência. Zygmunt Bauman. Capitalismo Parasitário. Ed. Zahar.
Eu sou um parasita. E não estou usando o termo pejorativo neste caso, pois parasita é, segundo o dicionário Houaiss: “organismo que vive de e em outro organismo, dele obtendo alimento e não raro causando-lhe dano”. Ora, eu recebo mensalmente na minha conta o aluguel de uma família que vive em minha casa, em outro estado. Eu não faço nada para receber aquele dinheiro: não trabalho, não forneço, não gero, e ainda assim, por estar em uma posição privilegiada dentro do sistema, eles é quem precisam trabalhar, fornecer e gerar, e, todo santo mês, depositar o aluguel.
E se… alguém vivesse às suas custas escondido no porão? Esta é a semiótica do contrato de aluguel
E o mais engraçado de tudo é que eu nunca imaginei que teria uma casa, mesmo para mim quanto mais para outrem — e planejei minha vida para viver sem raízes de espécie alguma. Admirava os andarilhos e estrangeiros; sem pretensão de grandeza, queria viver tal qual os monges mendicantes porém honrados, como Ryōkan e Francisco de Assis. A saúde e a força da juventude, então, incentivavam este ideal. Hoje eu mudei de ideia quanto ao valor de viver próximo de um lugar e de pessoas que se ama, e tenho até plantas para cuidar, mas isso não me impede de questionar o meu status quo.
Alguém pode até argumentar que cobrar aluguel é legítimo do ponto de vista do “custo de oportunidade”, pois o locatário ainda tem uma liberdade em se mudar para lugares que lhe interessam sem necessariamente estarem presos a um imóvel e outras coisas. Em relação a esse argumento só posso dizer que: a liberdade é ilusória, pois o dinheiro investido em aluguel não trará retorno, então, sem dinheiro, como ir e vir?, e também que o contrato, assim como as cláusulas muitas vezes exigentes dos locatários previne justamente esta suposta liberdade de ir e vir.
Meu locatário acabou de tentar aumentar meu aluguel usando a bíblia?
Também, esse argumento expõe um absoluto desconhecimento da natureza humana de busca da felicidade: se uma família ou um indivíduo busca se estabelecer em um lugar, ainda que ao custo de pagar aluguel todos os meses para isso, já se supõe que é ali que ele quer viver — e viver em um lugar significa criar relações e transitar nessa mesma rede de relações, um investimento emocional e de tempo também. Afinal, renunciamos às nossas raízes nômades para que isso fosse possível.
Um número cada vez maior de pessoas acreditava que havia sido um erro terrível da espécie descer das árvores. Algumas diziam que até mesmo subir nas árvores tinha sido uma péssima ideia, e que ninguém jamais deveria ter saído do mar. Douglas Adams. Trilogia Mochileiro das Galáxias. Ed. Arqueiro.
Se olharmos o desenvolvimento da civilização sob o prisma evolucionário, vemos que o nomadismo (a necessidade de locomoção constante) e a vivência em comunas com poucos indivíduos, apontam que o auge da harmonia do homem com o meio foi no paleolítico, há dez mil anos atrás. Ali descobriríamos a linguagem pictórica mas ainda vivíamos por aquilo que poderíamos ver e sentir. Nossa sobrevivência dependia de conhecer diferença sutis das cores dos animais, das flores e das frutas; “Estes [os humanos no paleolítico] passavam o tempo com atividades mais variadas e estimulantes e estavam menos expostos à ameaça de fome e doença” (HARARI, Sapiens, 2012). Deus, então, estava em todo lugar, e absolutamente tudo era manifestação divina.
Conforme fomos descobrindo meios de controlar o meio ambiente, nos sedentarizamos; foi o começo da queda e da extinção da diversidade biológica. Foi quando passamos a viver em grupos maiores e criamos mitos mais poderosos para justificar e manter a coesão social. Hoje temos de lidar com isso e com os vieses cognitivos que não se adaptaram ainda a uma vida moderna: “Estamos interessados em fofocas e histórias dramáticas, que em geral era a única fonte de notícias e informação útil. Temos forte desejo por açúcar e gordura, que por hábito eram recursos vitais de energia quando os alimentos se mostravam escassos” (ROSLING, 2019).
Também, passamos horas demais nas redes sociais para conseguir um pico de serotonina, mas a confusão vai muito além. As cidades deixaram de ser uma vantagem para se tornarem inevitáveis e inescapáveis; milhares e milhões de humanos passaram a ser agregados em um espaço físico que por definição é limitado — criando o paradoxo de não ter onde morar, com dignidade, em uma cidade cuja razão e origem foi exatamente a de trocar a vida nômade pela moradia fixa.
(…) Ainda precisamos desses instintos para dar sentido ao nosso mundo e fazer com que possamos sobreviver mais um dia. Se filtrássemos cada informação que chega e analisássemos racionalmente cada decisão, seria impossível ter uma vida normal. Não devemos cortar todo açúcar e gordura, e não devemos pedir a um cirurgião que remova as partes do cérebro que lidam com as emoções. Mas precisamos aprender a controlar a quantidade de drama que consumimos. Rosling, Hans. Factfulness: O hábito libertador de só ter opiniões baseadas em fatos . Record. Edição do Kindle.
Se não podemos derrubar, no entanto, o sistema que força as pessoas para a periferia dos centros urbanos, ou mesmo à atividades de ocupação, os assim chamados aglomerados subnormais, ao menos podemos lutar contra os preconceitos que se originam no seio da sociedade com quem vive nestes lugares; aos poucos aprendo o valor de ter e cuidar da própria casa, por mais distante e periférica que ela esteja. Para quem não tem preparação, passar uma única noite na rua pode ser uma experiência traumática; que dirá da população crescente de moradores de rua que — seja por dependência química, problema mental ou apenas quebra econômica, precisam passar os dias assim, à espera de algum alento, não importa de onde?
Uma casa abandonada em Cáceres que sorri aos passantes
Não pretendo fazer um mea culpa, apesar do que possa parecer. As pessoas são boas, quando o sistema não as impede. Não só por dar uma de Seu Barriga, muitas atividades humanas buscam explorar as necessidades dos outros, como agiotagem, prostituição e venda de drogas ilícitas e de bebidas alcoólicas; destas a pior, no entanto, por preencher uma necessidade inventada e não oferecer nada em troca é o contrato de aluguel, descrita por alguém como o equivalente a deixar seu cartão de débito com uma nota para saber o pin e a senha no meio de um festival.
Eu tenho meu trabalho, e também me esforço para ser um fardo mais leve para minha família, que sempre me sustentou nos estudos e viagens; mas isso não quer dizer que eu me sinta mais confortável; o que vem fácil sempre vai fácil se não estivermos precavidos. Quando questiono se é moralmente aceitável receber aluguel sempre me respondem que se eu não o fizer um outro o fará — e é nisso que reside meu questionamento, na contemplação de nossa situação social; é realmente o caso de não haver escapatória desta situação? O que dizer dos movimentos sem terra, dos movimentos de ocupação o que dizer da invasão de terras indígenas?
Construir, felizmente, não esta tão caro. Segundo pesquisa SINAPI do IBGE (link) que mede a variação do preço dos materiais de construção, o preço da construção por metro quadrado não está inflacionado já há algum tempo, e com a baixa das taxas de juros SELIC, os bancos estão mais propensos a darem aquela força para a primeira casa. Não estou sendo sarcástico quando digo para aceitar ajuda dos bancos: não aceitar neste caso seria loucura; Millenials já são a geração mais pobre que todas as gerações anteriores (para a pesquisa em português clique aqui), ainda que tenham a mais alta taxa de educação.
Se precisamos realizar nossos sonhos e não podemos esperar muito, também, não deveríamos nos deixar enganar por promessas de crédito fácil. Em pesquisas econômicas como a que faço no meu trabalho, precisamos monitorar o preço, entre outras coisas, da anuidade de cartão de crédito e outros serviços básicos oferecidos pelos bancos. É chocante. As taxas são vastas e cobrem de tudo, e incluem até mesmo pagamento para tirar o nome da lista de devedores— capitalismo em sua melhor forma, cobrando pela solução do problema que ele mesmo cria.
Acontece, que a despeito de quão dura seja a situação, e é preciso saber diferenciar temores imaginários de temores reais, e as pessoas merecem uma casa própria; se para isso precisarmos nos ajustar a um sistema que tem ao seu lado todos os políticos e recursos materiais, então que seja. Ajustados, mas não muito, admitimos que Bancos são uma poderosa instituição na sociedade e que gerenciam contingentes amplos de pessoas de todo lugar e classe social. Mantenhamo-nos atentos, afinal, um dia a conta chega.
Afinal, o capitalismo não quer que se pense nele; ele quer que ajamos estupidamente, sedentos por realização do desejo mais imediato, e nesse estágio tardio em que se encontra, ele depende completamente dos devedores de empréstimos e consumidores — sabendo disso se torna nossa inteira responsabilidade usar deste conhecimento a nosso favor, subvertendo a situação precária em que eles no colocam através do uso de, para usar um termo financeiro, nosso ativo mais importante.